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O que você sabe sobre obesidade infantil?

A obesidade infantil tem se tornado uma preocupação nas últimas décadas em função das consequências danosas para a saúde de crianças e jovens. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a obesidade e o sobrepeso teriam atingido proporções epidêmicas, pois hoje temos quase três vezes mais pessoas obesas do que em 1975. No caso de crianças e adolescentes, esse quantitativo já seria quase cinco vezes maior, demonstrando que o público infantojuvenil está mais afetado pela obesidade do que pessoas adultas. A região das Américas tem as taxas mais altas de todo o mundo, sendo importante, portanto, olhar com mais atenção para esse fenômeno em nosso país. 

Fonte: Ministério da Saúde

Nesse sentido, a tese de doutorado da Sabrina Gabriele Maia Oliveira Rocha, defendida em 2020, na Universidade Federal do Ceará, merece ser divulgada exatamente por abordar essa questão no campo da saúde coletiva. Com o título, 30 anos do perfil nutricional de crianças no semiárido brasileiro: transição nutricional e determinantes da obesidade infantil, a pesquisadora investigou o perfil nutricional de crianças do Ceará ao longo de três décadas, buscando compreender como a obesidade, se apresentou nesse período de tempo. Os anos de 1987, 1990, 1994, 2001, 2007 e 2017 foram analisados, pesquisando mais de duas mil crianças de dois a seis anos. São escassos os estudos sobre obesidade infantil, especialmente com crianças em idade pré-escolar, razão pela qual essa investigação ganha destaque.

Um dos pontos principais é que as consequências para a saúde em relação ao excesso de peso não são idênticas em adultos e crianças. O sobrepeso e/ou obesidade na infância e na adolescência apresentam um maior  risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares do que quando o excesso de peso é desenvolvido na idade adulta. Outras comorbidades relacionadas à obesidade infantil, são problemas renais, ortopédicos, neurológicos e psicossociais.

Para realizar essa pesquisa, a autora utilizou os dados primários sobre saúde materno-infantil do Ceará que foram coletados nos anos acima mencionados. Considerando a falta de informações sobre mortalidade infantil, na década de 1980, o governo do Estado, em parceria com o UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), iniciou a coleta periódica de dados para diagnosticar a situação sobre saúde e nutrição no Ceará. Tais levantamentos foram feitos pela Secretaria Estadual de Saúde que conseguiu compilar diversas informações sobre o tema. Hoje se entende a obesidade infantil como um acontecimento que envolve fatores ambientais, socioeconômicos e nutricionais, conforme o modelo abaixo.

Modelo teórico conceitual hierarquizado dos fatores de risco para obesidade infantil. 

Fonte: Tese de Doutorado de Sabrina

Há a compreensão de que os fatores alimentares e biológicos têm uma influência mais direta no desenvolvimento da obesidade infantil, sendo que o ambiente familiar, os fatores perinatais e os fatores socioeconômicos exerceriam uma influência mais indireta no fenômeno.

Em relação aos fatores socioeconômicos, sabe-se que famílias com uma menor renda, integrantes de estratos sociais mais baixos e participantes de programas de transferência de renda constituíram-se como fatores associados a um menor risco de obesidade infantil. Além disso, trata-se de uma população que pode ter menos acesso a tipos específicos de alimentos, como alimentos ultraprocessados, bebidas com adição de açúcares e práticas alimentares ruins. Outro aspecto que deve ser ressaltado se refere ao fato de que crianças que frequentam creches têm uma menor prevalência de obesidade, já que as refeições fornecidas nesses espaços são elaboradas por nutricionistas.

É importante contextualizar que, no Brasil, tivemos um período de transição nutricional ocorrido entre as décadas de 1970 e 1990. Significa dizer que antes teríamos uma situação de desnutrição infantil que foi reduzida, ao mesmo tempo em que se verificou um aumento do sobrepeso e da obesidade em adultos.

No que se refere aos fatores ambientais, famílias numerosas podem indicar a desorganização do ambiente doméstico, incorrendo em piores práticas alimentares. Desse modo, intervenções que reduzam a carga do ambiente das famílias com várias crianças podem ter efeitos significativos, melhorando os resultados nutricionais. 

Dentre os fatores perinatais, a obesidade materna foi identificada como elemento que tem relação direta com a obesidade infantil, não pela mediação das práticas alimentares, mas sim pela questão genética, tornando-as mais suscetíveis ao desenvolvimento de sobrepeso e/ou obesidade. 

Nos aspectos biológicos, o peso do bebê, ao nascer, acima de quatro quilos permaneceu como importante fator de risco para o desenvolvimento de excesso de peso na infância. Igualmente, uma má educação alimentar mantém-se como fator relevante para o desenvolvimento de obesidade e sobrepeso, realidade identificada nessa pesquisa de doutorado. A questão do desmame precoce se coloca como importante, tendo em vista que a amamentação foi identificada como fator de proteção contra essas morbidades. O consumo de vegetais, juntamente com a prática de atividades físicas e com o estilo alimentar dos pais, evidenciou menores índices de obesidade infantil.

Fonte: Universidade Federal de São Paulo

Nesse sentido, estudos que considerem a realização de atividades físicas, educação nutricional, incentivo ao consumo de frutas e verduras apresentaram efeitos positivos na redução de sobrepeso e obesidade em crianças em idade escolar. Interessante destacar que houve uma diferença na resposta entre meninos e meninas, já que elas apresentaram melhor resposta com intervenções comportamentais, enquanto que eles responderam melhor com intervenções de ordem estrutural. Podemos entender intervenções comportamentais como, por exemplo, ações que envolvem orientação, melhorando o nível de informações que as crianças têm sobre alimentação. Já as intervenções estruturais são aquelas que atuam diretamente nos fatores que influenciam o que se deseja alterar. Sendo a obesidade infantil, ações que incluam a prática de exercícios físicos e/ou o consumo de alimentos saudáveis seriam exemplos de intervenções de ordem estrutural.  

A pesquisa da Sabrina identificou que apenas fatores socioeconômicos não são suficientes para explicar a crescente obesidade infantil. Esses fatores foram bastante significantes em 1987, entretanto, vinte anos depois, os determinantes dessa morbidade tiveram mudanças consideráveis. Ficou evidenciada a importância de mudanças no ambiente familiar e nas condutas nutricionais das crianças.

Conforme já citado, o estado nutricional das crianças brasileiras tem revelado modificações, demonstrando o contexto de transição epidemiológica da desnutrição para obesidade infantil. Essa pesquisa identificou que houve uma inversão das prevalências de desnutrição e obesidade infantis entre os anos de 1994 e 2001, no estado do Ceará. Isso porque, nesse período, o número de crianças pré-escolares com desnutrição caiu 42%, sendo que o de sobrepeso cresceu quase 100% e a obesidade infantil aumentou mais de 300%.

Com esses dados, por mais que não possam ser generalizáveis para outras realidades, é possível concluir sobre a importância de formular políticas públicas que incluam a nutrição como eixo estruturante no campo da infância e juventude. Alimentação é uma questão de saúde coletiva e não deve ser negligenciada. 

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Refugiados no Brasil e a relevância das continuidades de pesquisas em Direitos Humanos

“Enquanto pesquisadora, penso que os discursos que promovem ampliação do lugar discursivo do refugiado precisam ser reforçados e melhor trabalhados, sobretudo na mídia tradicional, para que a cidadania deste sujeito seja mais plena e efetiva.” (GALVÃO, 2019).

Créditos de imagem: CONARE/Ministério da Justiça e Segurança Pública

O texto de hoje traz a dissertação “Refugiado: que lugar de sujeito é esse? análise do discurso de e sobre refugiados no Brasil”, defendida e publicada em 2019 por Vanda Késsia Gomes Galvão na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Antes de iniciar o texto, falemos sobre a autora. Vanda Galvão é Mestre e Doutoranda em Linguagem e Ensino pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Estadual da Paraíba (2012). É Coordenadora de Imprensa e Eventos na ANAJURE, entidade de juristas que lida com pautas ligadas à liberdade religiosa e ajuda humanitária. É também assessora do Programa ANAJURE Refugees, cuja atuação tem demandas humanitárias no Oriente Médio, ações diplomáticas no Congresso Nacional e suporte para famílias de refugiados acolhidos no Brasil. Sua dissertação aqui apresentada tem como objetivo de pesquisa compreender como os fios das narrativas jurídica, midiática e de refugiados se (des)encontram na construção do lugar discursivo do sujeito refugiado no Brasil.

“Precisamos dialogar sobre as migrações atuais porque há pessoas sendo agredidas e elas não estão apenas sofrendo pelos arames e muros da Europa e América do Norte; estão também no Brasil, viajando quilômetros e mais quilômetros na interiorização, tentando lidar com dificuldades linguísticas, econômicas e geográficas para ter uma vida digna. Mas há também pessoas sendo abrigadas, abraçadas e ajudadas pelo cidadão comum que se dispõe a entender o venezuelano que fala “portunhol”, pelo Governo Federal que articula políticas de acolhimento, ou pelas ONGs, instituições de ajuda humanitária e igrejas, que, voluntariamente, fazem muita diferença social na hora da adaptação do refugiado.” (GALVÃO, 2019).

Como bem destaca a autora em sua introdução, o refugiado é aquele que é obrigado a se deslocar buscando refúgio por razões de perseguições racial, religiosa, política, social, nacionalidade ou qualquer outra forma grave de violação aos direitos humanos e deve ser protegido tendo como referência principal as leis e convenções internacionais de direito humanos e migração. Dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) afirmam que o ano de 2018 alcançou recorde nos pedidos de asilo de forma global, o que também repercutiu no aumento de pessoas solicitando refúgio no Brasil, que nesse mesmo período revogou sua adesão ao Pacto Global para Migração, proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Neste período em questão, emergiram muitos discursos e ideologias diversas discutindo mundialmente sobre os refugiados. Logo, chamou a atenção da autora que a “crise migratória atual levanta a problemática da existência de heterogeneidade e até contradição nos discursos em torno do tema, de forma que é necessário buscar compreender a posição do sujeito refugiado nesse contexto e qual lugar discursivo ele ‘pode e deve’ ocupar”. “Como se constrói o lugar discursivo desses sujeitos no Brasil, o qual é perpassado por formas de representação oriundas dos campos jurídico, midiático e também dos discursos do próprio refugiado”? Para responder essa pergunta, optou-se por uma pesquisa qualitativa de abordagem interpretativa, cuja base teórica e metodológica é a Análise do Discurso.

Como resultados e conclusões de sua pesquisa são apontados três aspectos. Primeiramente, no discurso jurídico brasileiro, “o refugiado foi sendo constituído por deslocamentos que ocorreram do contexto da ditadura militar, na década de 1980, com o Estatuto do Estrangeiro, até o da aprovação da Lei de Migração, em 2017”, sendo o Estatuto do Refugiado de 1997 uma considerável ruptura discursiva do refugiado como potencial ameaça de forma dominante. Entretanto, apesar destes avanços, a autora ressalta que é necessário reconhecer que a memória de ameaça permaneceu presente. Em segundo, as análises de 19 sequências discursivas retiradas de 501 matérias publicadas entre 2017 e 2018, apontaram que o discurso midiático tradicional promove um espaço de interpretação que associa o refúgio ao caos social e à uma ameaça, mesmo quando as pautas sugerem falar da vulnerabilidade das migrações forçadas; ao passo que a mídia alternativa problematiza e os identifica como promissor promotor de trocas culturais e também de um sujeito vulnerável e carente de proteção. Por fim, a análise dos discursos dos próprios refugiados através de entrevistas indica que há distintas percepções e experiências, a depender de contextos culturais e de classe social das famílias de refugiados, notou-se expectativas de esperança e liberdade no Brasil, mas também contextos de xenofobia e outras violências.

“Não se pode negar a condição de vítima do refugiado por meio de relativizações ou generalizações decorrentes do fato deste sujeito ser visto como ameaça social, porque tal interpretação responsabiliza a vítima por algo que não é culpa dela: é um problema de ordem política. Se há caos social no contexto do refúgio, em nossa ótica, com base no presente estudo, a responsabilidade é política: internacional e nacional. Cabe, portanto, à sociedade internacional e aos governos locais, adotarem medidas protetivas para as vítimas e seus nacionais, ajudando na resolução dos conflitos migratórios, que é um problema global.” (GALVÃO, 2019).

Destaco aqui que, a meu ver, a pesquisa da autora é uma importante referência para se compreender a questão do refúgio no Brasil, principalmente por ter sido realizada em um período próximo ao da aprovação da Lei Nº 13.445/2017, nomeada “Lei de Migração”, que levantou inúmeros debates, polêmicas e contestações. Ao trazer para análise três perspectivas distintas, mas paralelas, Vanda Galvão ressalta a importância de considerar os diferentes contextos políticos e sociais que ainda atravessam a temática de migração e refúgio dentro do território brasileiro e revelam o tamanho do desafio que enfrentamos.

Além disto, considero que é mais um lembrete à nossa sociedade brasileira sobre a necessidade e relevância de investimentos e apoio para a continuidade de pesquisas na área de Direitos Humanos, dado que nos últimos anos, em especial na atual gestão do governo, as Ciências Humanas têm sido propositalmente negligenciadas e afetadas pelos cortes financeiros (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020).  É somente pesquisando que se fazem políticas públicas justas e eficazes.

Referências

FOLHA DE SÃO PAULO. Em meio a pandemia, governo Bolsonaro investe contra pesquisa em ciências humanas. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/03/em-meio-a-pandemia-governo-bolsonaro-investe-contra-pesquisa-em-ciencias-humanas.shtml>. Acesso em 6 de novembro de 2021.

GALVÃO, V. K. G. Refugiado: que lugar de sujeito é esse? análise do discurso de e sobre refugiados no Brasil. 2019. 172 f. Dissertação (Mestrado em Linguagem e Ensino) – Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino, Centro de Humanidades, Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba, Brasil, 2019. Disponível em: < http://dspace.sti.ufcg.edu.br:8080/jspui/handle/riufcg/6957>. Acesso em 5 de novembro de 2021.

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Carne de caranguejo é uma iguaria que faz sucesso entre diferentes espécies, mas como nós, os macacos-prego também precisam quebrar a “casca” caranguejo.

O uso de ferramentas por muito tempo foi considerado um divisor de águas na evolução do ser humano. A capacidade de construir e usar ferramentas, assim como a linguagem eram consideradas únicas aos humanos, e portanto o que diferenciava os humanos dos outros animais.

Em 1960, Jane Goodall relata o uso de ferramentas por chimpanzés selvagens, o que causou alvoroço na comunidade científica e na população em geral, tanto que Louis Leakey, uma famoso antropologista, disse: “Agora temos que re-definir ferramenta, redefinir o Ser Humano ou aceitar que chimpanzés são humanos” (tradução direta).

Essa fala evidencia os pensamentos que essa descoberta trouxe: será que o elo perdido entre humanos e animais havia sido descoberto? Será que existe uma conexão entre humanos e animais na forma que pensamos e aprendemos?

De lá pra cá cientistas acharam mais exemplos de animais que usam ferramentas e que aprendem como usa-lás (ao invês de usar de forma intrínseca), mas depois de mais de 40 anos, ainda estamos tentando entender como os animais pensam e aprendem. Tentando entender o que esse comportamento revela sobre nós, humanos, mas também sobre o processo evolutivo por detrás desse comportamento. E é para o entendimento desse complexo problema que nossa jovem cientista Jardeani Mendes Silva contribui com sua tese de mestrado intitulada “Seleção de ferramentas e caranguejos por macacos-prego (Sapajus libidinosus) em manguezal.” defendida na Universidade Federal do Maranhão, onde se formou como mestra em Biodiversidade e Conservação (2019), onde também se graduou em  Ciências Biológicas (Licenciatura e Bacharelado) em 2014. 

No seu trabalho, Jardeani estudou o uso de ferramentas por macacos-prego (Sapajus libidinosus), que foram os primeiros macacos das Américas a serem vistos usando ferramentas na natureza, e não em condições de cativeiro. Jardeani conduziu o trabalho dela num ambiente muito especial, o manguezal. Nesse ambiente os macacos se alimentam de caranguejos (Ucides cordatus) e usam ferramentas para quebrar o exoesqueleto e comer a carne. Apesar da beleza e da importância desse ecossistema manguezal, é um ambiente de difícil acesso e visualização, não foi sem muita perseverança que Jardeani conseguiu coletar dados sistemáticos para entender se o peso das ferramentas utilizadas pelos macacos estavam relacionadas com o tamanho dos caranguejos. Para além disso, ainda tinha como objetivo verificar como as ferramentas são usadas por indivíduos de diferentes idades.

A pesquisa foi realizada no manguezal do rio Preguiças, na cidade de Barreirinhas, na costa norte do Maranhão, Brasil. Muito perto dos famosos Lençóis Maranhenses. Ela distribuiu plataformas dentro da área de vida dos macacos-prego onde disponibilizava caranguejos de diversos tamanhos e esperava para observar qual macaco do grupo iria comer esses caranguejos, se iria usar ou não ferramenta para

abrir o caranguejo e quais as medidas das ferramentas usadas.

Ela encontrou que 8 dos 16 animais do grupo usavam ferramentas, mas que diferentemente dos macacos-prego de Caatinga e Cerrado, os macacos-prego do Manguezal não usam pedras como ferramentas, mas madeira. Ela também encontrou relação da ferramenta não com o tamanho do caranguejo em si, mas com o tamanho do quelípode, a parte do caranguejo que deve ser a mais dura de se quebrar. Além disso, ela verificou que nessa população todos que usaram ferramentas eram adultos.

Esses resultados são muito importantes na contribuição para entender esse grande quebra cabeça que é a evolução da complexidade cognitiva humana. 

TESE:

Silva, Jardeani & M, Silva. (2019). SELEÇÃO DE FERRAMENTAS E CARANGUEJOS POR MACACOS-PREGO (Sapajus libidinosus) EM MANGUEZAL. 10.13140/RG.2.2.20422.22084. 

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Pedagogia feminista decolonial

Nessa tese buscamos evidenciar o lema “nada sobre nós, sem nós”. Ou seja, que sejamos contadoras da nossas próprias histórias, analistas dos nossos processos e que, mesmo quando um homem insistir em falar sobre nós, que não seja sem a nossa validação” (GIL, 2021, p. 14)

A pesquisadora Vanessa N. da Silva Gil, é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2010), especialista em História do Pensamento Marxista e pós-graduada em Gestão Pública na Perspectiva de Gênero e Promoção da Igualdade Racial. Mestra em Educação pela UFRGS e Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Defendeu neste ano de 2021 sua Tese de doutorado em Educação com o título “Pedagogia Feminista Decolonial: Decolonialidade e práticas pedagógicas feministas na Marcha Mundial das Mulheres” financiada mediante bolsa de doutorado concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior – CAPES.

Em seu trabalho, a pesquisadora faz uma interessante análise sobre a relação entre as teorias decoloniais e de gênero com as práticas pedagógicas da Marcha Mundial das Mulheres – MMM. Por meio do lema “nada sobre nós, sem nós” entende que as histórias das mulheres precisam ser contatas por mulheres. Ou seja, é do lugar de subalterno que Vanessa traz as narrativas de resistência deste movimento. Além de dar ênfase na perspectiva educativa que o movimento tem a luz do pensamento freiriano o qual defende que é na leitura de mundo que nos educamos e podemos educar outros (as) sujeitos (as).

No desenvolver de sua reflexão, a autora utiliza-se das técnicas de pesquisa da metodologia do Materialismo Histórico Dialético em consonância com a teoria decolonial crítica para compreender o caráter pedagógico e transnacional deste movimento social. Levando em consideração que os diferentes eixos de opressão incidem de modo complexo e determinante na vida de diferentes mulheres, que ao participarem do MMM trazem suas falas e reivindicações sem deixar de grafar que a luta é coletiva.

Sua tese é dividida em oito capítulos que trazem questões importantes sobre a temática a partir da revisão teórica sobre a colonialidade e seus efeitos, em que as epistemologias feministas decolonais emergem como crítica ao processo colonial. Em sua análise do MMM a autora aborda no decorrer dos capítulos a profundidade do movimento e seus campos de ação – autonomia econômica das mulheres, bens e serviços, paz e desmilitarização e o fim da violência contra as mulheres. Estes eixos ajudam a autora a territorializar como o modo de produção capitalista e os fatores da interseccionalidade recaem sob os corpos das mulheres em marcha.

Vanessa apresenta em seu percurso de escrita as entrevistas, reuniões, encaminhamentos das pautas, documentos, normativas e as marchas em si como elos que contribuem para a percepção que as mulheres do MMM ao se organizarem coletivamente constroem uma pedagogia feminista decolonial. De modo que na luta do movimento depreende-se processos pedagógicos, pois, a educação do movimento enaltece as mulheres a continuarem em marcha por direitos sociais e por justiça social.

 A autora chega à conclusão que “as práticas da MMM, despatriarcais, anticoloniais, anticapitalistas, colocam no centro do debate a voz das mulheres, os impactos sobre as suas vidas e constroem as formas de luta” (GIL, 2021, p. 122). Sendo assim, é no movimento que estas mulheres constroem uma pedagogia feminista decolonial em luta, ao enfrentarem as estruturas sociais pelo bem-viver. Sendo experiências significativas para que possamos compreender melhor de que modo as mulheres em diferentes contextos se articulam enquanto movimento social para resistir, defendendo seus direitos e somando forças com outras companheiras, sustentando a pisada e seguindo em frente.

Referências

GIL, Vanessa N. da Silva. Pedagogia Feminista Decolonial: Decolonialidade e práticas pedagógicas feministas na Marcha Mundial das Mulheres. (Tese de doutorado em Educação). Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo – RS. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:4rWYe0ez70gJ:www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/9768+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 05/07/2021

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Rompendo silêncios

A tese de Fernanda R. Miranda sobre escritoras negras no Brasil

Mapear e analisar quase 150 anos de história literária brasileira, destacando oito romances de oito autoras negras, entrelaçando narrativas, teorias e obras literárias: esse é o ponto de partida para descrever a audaciosa e necessária pesquisa da Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, Fernanda R. Miranda. A tese Corpos de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da história e colonialidade nacional confrontada, defendia em 2019 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, foi a vencedora do Prêmio Capes de Teses de 2020 na área de Linguística e Literatura. E também foi publicada no formato de livro com o título Silêncios Prescritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006), pela Editora Malê.

A autora afirma que seu texto parte de uma encruzilhada: “plurilugar que de partida estanca a possibilidade indesejada da via única. Encruzilhando autorias, teorias e áreas do conhecimento a fim de abarcar um conjunto inaudito de textos literários, abrem-se caminhos na leitura” (MIRANDA, 2019, p.15). A pesquisa tem como premissa que o silenciamento da voz da mulher negra como autora de literatura é sistêmico no Brasil, por isso tornar visível o corpus escolhido para análise da pesquisa da tese é fundamental, sobretudo pela análise das potências estéticas, epistemológicas e discursivas das obras, relegadas pela crítica literária brasileira. Crítica e obra literária estão igualmente inscritas historicamente.

A escolha por estudar o gênero romance articula uma necessidade e uma urgência, segundo Fernanda Miranda. Necessidade, porque o negro ainda precisa disputar para ter o direito de contar suas próprias histórias, não sendo relegado a ser mero objeto de narrativas. Também é necessário estudar os romances de autores negros para juntar, pelos caminhos da literatura, as fragmentações de memória que os silenciamentos históricos impuseram e, assim, problematizar a construção imaginária eurocêntrica. É preciso disputar as narrativas e ter espaço para contar suas histórias, sejam elas íntimas, particulares e anônimas, assim como as nacionais, as globais e as canônicas.

Estudar romances de autores negros é urgente pelo número reduzido de obras publicadas que hoje podem ser encontradas. A autora da pesquisa conseguiu mapear de 1843, quando Teixeira de Sousa, autor negro, publicou O filho do Pescador, o primeiro romance brasileiro, até 2019, o total de 90 obras, escritas por 39 autores, dos quais 14 são mulheres. Entretanto, a pesquisadora acredita que haja muitas obras que foram soterradas ao longo do tempo. Tais números contrastam com o número geral de romances publicados no Brasil, uma vez que é o gênero literário mais privilegiado no mercado editorial. É necessário questionar essa invisibilidade e a falta de divulgação de romances de autoria negra.

Os romances selecionados para análise atravessam três séculos e a leitura comparada revelou aproximações entre as obras, como o atravessamento da colonialidade, sobretudo pelo passado escravocrata brasileiro e pela necessidade de se tomar posse da narrativa histórica. As obras foram: Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, Água Funda, de Ruth Guimarães; Pedaços da fome, de Carolina Maria de Jesus; Negra Efigênia, paixão de senhor branco, de Anajá Caetano; A mulher de Aleduma, de Aline França; As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto; Ponciá Vicêncio, Conceição Evaristo; Um Defeito de Cor, Ana Maria Gonçalves.

Das oito obras que compõem o corpus central, três delas, uma escrita no século XIX, outra no XX e outra no XXI, remetem seus enredos ao tempo da escravidão, são elas Úrsula (1859); Negra Efigênia, paixão do senhor branco (1966) e Um Defeito de cor (2006). Três obras articulam uma temporalidade continuada entre a escravidão e o pós-abolição, abrangendo até a primeira parte do século XX, são elas: Água funda (1946); Pedaços da Fome (1963) e Ponciá Vicêncio (2003). Por fim, duas obras publicadas praticamente ao mesmo tempo, A mulher de Aleduma (1981) e As mulheres de Tijucopapo (1982), inscrevem o tempo contemporâneo como de longa de um passado recalcado, que retorna (MIRANDA, 2019, p.68)

Em cada capítulo analítico, a autora faz uma apresentação das autoras, as situando em seu contexto social, cultural e temporal. Há uma análise do impacto da obra no cenário literário de sua época de publicação e como a obra repercutiu ao longo do tempo. Constata-se que algumas autoras, como Maria Firmina dos Reis e Ruth Guimarães foram bastante lidas a época de suas publicações e passaram anos em silenciamento. Já as obras de Aline França e Anajá Caetano não possuem novas publicações e seus romances estão foram de catálogo há anos: o romance Negra Efigênia, paixão de senhor branco, de Anajá Caetano e publicado em 1966 contou apenas com uma única edição. E o romance A mulher de Aleduma, de Aline França, de 1981, contou com uma 2ª edição em 1985 e nunca mais foi republicada.

O romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, por exemplo, publicado em 1859, é extremamente relevante para a historiografia literária nacional, sendo o primeiro romance de uma autora negra brasileira e primeiro romance abolicionista escrito no país. Apesar de sua importância, ficou anos esquecido, tendo uma 2ª edição da obra publicada apenas em 1975. O mesmo pôde ser observado com Ruth Guimarães. Seu romance Água Funda foi muito bem recebido pela crítica e pelo público à época de seu lançamento, em 1946. A autora circulava e participava de debates com os principais autores do Modernismo paulista, como Mario de Andrade. Uma segunda edição da obra, entretanto, só foi publicada em 2003.

Outra reflexão apresentada pela pesquisadora Fernanda Miranda é a interferência do mercado editorial ao publicar a obra de autoras negras, como é o caso de Carolina Maria de Jesus. Seu romance Pedaços da Fome recebeu esse título pela editora. Carolina havia escolhido como título de sua obra A Felizarda. Após o sucesso editorial de Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, publicado em 1960, a voz da escritora era bem recebido como aquela que narraria sobre a pobreza e não como a autora potente e talentosa que de fato era. Para a pesquisadora:

Carolina poderia falar, desde que falasse do lugar do subalterno. O problema é que, como aprendemos com Spivak (2010), o subalterno não pode falar, porque quando fala, rompe com a condição de subalternidade – o silêncio é o (não)lugar epistêmico que funda e sustenta o sujeito subalterno. Eis o ponto a insistência numa via única de enunciação para Carolina a mantém circunscrita ao lugar de subalternidade que ela rompeu exatamente através da palavra escrita (MIRANDA, 2019, p.167)

Ao longo do tempo, há transformações em relação a popularização e visibilidade das autoras negras. Publicadas no final do século XX e nos primeiros anos do século XXI, as obras de Marilene Felinto, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, por exemplo, são reconhecidas pela crítica e pelo público e os seus romances já receberem reimpressões e novas edições. Mesmo que a passos lentos, aos poucos as obras vão conquistando espaço no mercado editorial e os leitores encontram com mais facilidade os livros.

As obras analisadas apresentam um espaço interseccional de enunciação, ou seja, constroem uma narrativa pela perspectiva da mulher negra. É apresentado um olhar amplo sobre o universo ficcional, numa representação das interações entre quem detém o poder e quem era silenciado, dando foco àqueles que a História, enquanto narrativa construída pelas elites, tem ocultado. Por isso, os romances apresentam uma construção que representa a mulher negra, e também apresenta leituras de nação, das cidades, das elites, das feminilidades e das masculinidades brancas, hegemônicas ou não.

Intendo tornar visível, por meio da leitura comparada, que o corpo de romances de autoras negras constitui instrumento cognitivo capaz de produzir uma elaboração sobre a modernidade brasileira inscrevendo-a de forma crítica, por meio de sua face colonial – demarcada através da configuração dos lugares de poder a intersecção de gênero e raça. Deste corpo, emerge uma cognição libertadora, porque traz à superfície ficcional a sustentabilidade de signos soterrados na significação da nação e da História tornando visível a resistência diversificada de mulheres negras diante da permanência da colonialidade (MIRANDA, 2019, p.69)

A pesquisa de Fernanda R. Miranda abre caminhos. Ela incita a todo momento a necessidade de ampliar esse corpus, de explorar outras obras silenciadas ou pouco trabalhadas. Seu resgate de obras quase esquecidas, como as de Aline França e Anajá Caetano, que foram analisados pela primeira vez em uma pesquisa acadêmica, ao lado de romances mais conhecidos, como o da Ana Maria Gonçalves e o da Conceição Evaristo, demonstram a importância de conhecer essas narrativas, de conhecer a leitura dessas mulheres sobre a sociedade. Que os silêncios sejam rompidos, e a cada dia mais as vozes de mulheres negras ecoem, sejam as do passado, sejam as do presente, para que as do futuro encontrem uma sociedade menos opressiva.

REFERÊNCIAS

MIRANDA, Fernanda Rodrigues de. Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da história e colonialidade nacional confrontada. 2019. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019. doi:10.11606/T.8.2019.tde-26062019-113147. Acesso em: 2021-02-20.

______. Silêncios Prescritos: Estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). Rio de Janeiro: Melê, 2019.

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O Maravilhoso Mundo dos RNAs – Parte I

Você com certeza já ouviu falar de DNA e o associa a hereditariedade e material genético. DNA é uma molécula biológica, cuja sigla vem do inglês e pode ser traduzida como ácido desoxirribonucleico. As proteínas também são bastante conhecidas, e sabe-se que elas realizam diversas tarefas no nosso corpo. O RNA (ácido ribonucleico) é tão importante quanto o DNA e as proteínas, porém é bem menos conhecido e mencionado pela mídia. Essas três moléculas: DNA, RNA e proteínas se relacionam dentro das nossas células, como descrito pelo dogma central da biologia molecular. Este foi descrito originalmente em 1970 num artigo do famoso cientista Francis Crick. Crick desenvolveu o dogma com base em seus experimentos, nos de James Watson e Rosalind Franklin

Descrição da imagem: desenho esquemático do fluxo de informação do material genético,  DNA, até as funções celulares. À esquerda está esquematizado o fluxo mais tradicional do dogma central da biologia molecular, no qual o gene é transcrito do DNA ao RNA mensageiro, o qual é posteriormente traduzido em proteína. A proteína realiza então as funções celulares. À direita, temos um fluxo alternativo, no qual o gene é transcrito em RNA não codificador, o qual não é traduzido e já é capaz de realizar funções celulares. Créditos: Wikimedia, por Thomas Shafee.

Durante um longo tempo, os RNAs foram descritos somente como uma molécula de transição, do DNA para as proteínas, sem grandes funções próprias. As proteínas, essas sim, sempre foram descritas como funcionais e consideradas as grandes realizadoras de funções na maravilhosa máquina celular. Abaixo, podemos ver um esquema de célula animal, com suas organelas e estruturas, incluindo o núcleo, onde está o DNA. 

Descrição da imagem: célula animal. Créditos: Wikimedia, por Mediran.

Hoje em dia se sabe que alguns RNAs podem agir de maneira semelhante às proteínas. Esses são denominados RNAs não codificadores, ou simplesmente ncRNAs. Os ncRNAs são objeto especial de estudo na comunidade acadêmica atual e busca-se entender quais são suas funções. O ponto chave dessas moléculas biológicas é que dependem de sua estrutura para funcionarem bem. Por serem extremamente pequenos, ainda é muito difícil visualizá-los, mesmo com aparelhos de tecnologia de ponta. Existem poucas estruturas que foram definidas por meios experimentais. Por isso, modelos teóricos de resolução (ou predição) de estruturas são tão importantes. Na figura abaixo, podemos ver um belíssimo exemplo de estrutura em três dimensões definida por raios-X. No canto direito, a mesma estrutura é ilustrada em forma 2D. A maior parte dos modelos teóricos calcula as estruturas em 2D, já que são menos complexas de serem calculadas.

Descrição da imagem: Estrutura de RNA transportador, definida por raios-X. Créditos: Wikimedia, por Zikrayuul.

Nesse artigo, nós descrevemos os princípios básicos dos RNAs: eles são muito importantes para o bom funcionamento da célula e se dividem em duas classes principais, uma que dá origem à proteínas, e outra que é ativa por si só, a qual depende da sua estrutura para funcionar. No próximo artigo dessa série sobre o maravilhoso mundo dos RNAs, aprenderemos como se prediz a estrutura dos ncRNAs. Fique atento ao nosso blog para não perder esse próximo capítulo!

Referências

Walter Costa, Maria Beatriz. Tese de Doutorado (Doctor rerum naturalium) em Ciência da Computação. “Adaptive Evolution of Long Non-Coding RNAs”. Universidade de Leipzig, Alemanha. Programa Ciência sem Fronteiras – CNPq/Brasil 2018  https://nbn-resolving.org/urn:nbn:de:bsz:15-qucosa2-323898

Lorenz, Ronny; Wolfinger, Michael; Tanzer, Andrea; Hofacker, Ivo. “Predicting RNA secondary structures from sequence and probing data”. Methods. https://doi.org/10.1016/j.ymeth.2016.04.004 2016 

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08 de março de 2021

Está tudo muito difícil, sabemos. A pandemia causou mais impactos na vida das mulheres brasileiras, que sofrem ainda mais violência doméstica e sobrecarga de trabalho. O desemprego também afetou mais a elas, e sem o auxílio emergencial, muitas chefes de família estão em situação de vulnerabilidade social.

São as mulheres, também, as principais profissionais na linha de frente do combate ao coronavírus. Há um ano, elas enfrentam jornadas exaustivas, em casa e no trabalho, somadas ao medo de se contaminar e levar o vírus para seus entes queridos.

No meio acadêmico, a produtividade das mulheres despencou, reflexo das desigualdades de gênero e também de raça. Uma pesquisa mostrou que os grupos mais impactados foram os das mulheres negras (com ou sem filhos) e das mulheres brancas (com filhos de até 12 anos).

O dia internacional das mulheres sempre foi uma data de lutas e neste 08 de março de 2021, fazemos coro à Maria Bethânia: queremos vacina, respeito, verdade e misericórdia.

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Nas ruínas da sociedade, a literatura faz humanos: a pesquisa de doutorado de Melissa Sá sobre distopias femininas.

Arte de Renee Nault para a adaptação de The Handmaid’s Tale para graphic novel (2019)

A relação entre literatura e sociedade – tanto a sociedade que a produz como a que a lê, nem sempre coincidentes – é uma questão basilar dos estudos literários e também uma resposta possível para a eterna e incômoda pergunta “para que serve literatura?”. A tese de doutorado “Stories that make us humans: Twenty-First-Century dystopian novels by women”[1], defendida pela professora Melissa Cristina Silva de Sá na Universidade Federal de Minas Gerais em 2020, oferece dois caminhos muito interessantes para pensarmos aquela relação a partir de um só gênero literário.

A proposta de Melissa Sá é buscar entender de que forma o ato de narrar uma história está associado com aquilo que nos torna humanos, e como essa questão aparece em romances distópicos escritos por mulheres a partir dos anos 2000. Os três romances selecionados por Sá para traçar características comuns do tema foram The Telling (2000), de Ursula K. Le Guin, ainda não traduzido no Brasil, The Stone Gods (2007 – em português, Deuses de Pedra), de Jeanette Winterson, e MaddAddam (2013 – em português, MaddAdão), de Margaret Atwood, a qual ficou muito conhecida por aqui depois do sucesso do seriado The Handmaids’ Tale (O conto da Aia), baseado em seu romance de mesmo título. Além desses três títulos, Sá traz muitos outros exemplos de romances distópicos escritos por mulheres para embasar suas análises e reforçar seus argumentos, mantendo, porém, um recorte de obras em língua inglesa. Apesar de a maioria das autoras estudadas serem norte-americanas ou canadenses (Winterson é a única britânica) e brancas, há também o multiculturalismo que se reflete, por exemplo, nas obras de Nalo Hopkinson, de origem jamaicana, e Nnedi Okorafor, de família nigeriana. Desta última, vale destacar o romance Who Fears Death (Quem Teme a Morte, 2010), o qual retrata uma sociedade dividida violentamente entre duas etnias, remetendo-se ao massacre de Ruanda de 1994 e o conflito entre as etnias Hutu e Tutsi.  

Ursula K. Le Guin e sua obra The Telling

Para Sá, esses romances selecionados continuam uma tradição da ficção científica feminina, como visto em outras obras de Atwood e Le Guin, ou ainda em Octavia Butler, de questionar e descartar características “tradicionais” desse gênero literário solidificadas nos romances escritos por homens, mas vão além ao direcionarem seu foco para a questão da narração e para o compartilhamento de experiências via narração como características não só humanas mas também humanizantes. Ou seja, ao invés de propor que a narração tem a capacidade de tornar as pessoas mais humanas – algo que o sempre relevante Antonio Candido já propôs em “O Direito à Literatura” (1988) –, essas obras vão humanizar criaturas não-humanas, como aliens, robôs e seres criados geneticamente, exatamente pela sua capacidade de se apropriar do ato de narrar e de compartilhar experiências.

Outro ponto em comum nas obras estudadas por Sá é a forma como a narração tem um grande poder de impactar aquela sociedade que está “perdida”. As distopias normalmente trabalham com um cenário negativo, como pós-apocalíptico, autoritário, violento, de desesperança, etc., mas a narração traz em si a possibilidade de se criar um novo mundo ou de alterar significativamente aquele já existente. Nas palavras de Sá, “esses romances enfatizam de maneira contundente como o ato de narrar cria e molda não só indivíduos mas também sociedades. A linha que divide ficção realista e não-realista é borrada nesses romances selecionados porque, em alguns, histórias literalmente mudam o mundo, assim como personagens, ao reescreverem um livro, também reescrevem a história e a memória de uma sociedade (…). Histórias e suas consequências são uma constante na ficção distópica escrita por mulheres, e elas são os meios para a mudança”[2] (p.33, tradução minha).

Jeanette Winterson e seu romance Deuses de Pedra

E por que isso é importante? Distopias, afirma Sá, são baseadas ou trabalham com medos coletivos específicos da sociedade em que o autor vive – esses medos são colocados em prática nessas obras no pior cenário possível, obrigando os leitores a experimentá-los. Dessa forma, podemos dizer que a literatura tem raízes profundas na sociedade que a produz, mesmo que essa relação não seja sempre óbvia. Como consequência, a ficção científica distópica, para falar desse gênero em específico, também é um lugar privilegiado de reflexão sobre aquela sociedade e, por que não, um instrumento de transformação. Leitores, confrontados com realidades aterrorizantes, são desafiados a se questionarem, a enfrentarem os problemas que aquela obra apresenta, e a tentarem mudar a sua própria realidade. Os romances estudados por Melissa Sá, por tratarem da narração como possibilidade criativa, humanizadora e produtora, são eles próprios, portanto, exemplos de como se dá a relação entre literatura e sociedade. Ainda mais, a pesquisa de Sá tem o valor de levantar as questões propostas por cada uma das obras estudadas, questões atuais e que nos dizem respeito, e nos forçar a pelo menos tentar respondê-las.

Para compreender melhor a pesquisa de Melissa Sá, esse gênero literário tão intenso e também as pesquisas acadêmicas na área de Estudos Literários, realizei uma breve entrevista com a autora, que reproduzo a seguir. Espero que muitos fãs de ficção científica confiram a tese de Sá, disponível no repositório da UFMG, e que muitos outros se tornem fãs desse gênero depois de ver um estudo tão cuidadoso e instigante. Caso a língua inglesa seja uma barreira, ao final há indicações de outras publicações de Sá sobre o assunto. E, obviamente, fica a dica para a leitura dos romances citados nesse artigo e na tese.

Margaret Atwood e a edição brasileira de MaddAdão

Entrevista:

CF: Por que você escolheu fazer um recorte de distopias escritas apenas por mulheres? Haveria uma relação entre a experiência do gênero feminino na atualidade com essa preocupação central com a narração, ou com o ato de narrar/contar?

MS: Escolhi trabalhar distopias escritas por mulheres como uma forma de mapear essas autoras e analisar a visão social apresentada em seus romances. Meu foco é esse desde minha iniciação científica em 2010 e essa pergunta sobre o recorte feminino sempre aparece, de diversas formas. Engraçado porque, muitas vezes, um recorte exclusivamente masculino não provoca nenhuma necessidade de justificativa. Isso diz muito do que socialmente é aceito como uma amostra literária de um gênero.

Distopias estão sempre entrelaçadas com as questões contemporâneas do tempo em que foram escritas e acredito que no século XXI existe uma inquietação narrativa. Em meio a tantas narrativas possíveis, fake news e histórias fabricadas, há uma necessidade de se contar a própria história, de se narrar o que se viveu; uma busca pelo “autêntico”. Para as mulheres, mostrar a validade de suas experiências sempre foi algo central no movimento feminista, mas acredito que nos últimos vinte anos essa necessidade de contar sua própria experiência, narrar a si mesma, tem se tornado mais latente. Temos como exemplos movimentos como o Me Too, que abriu as portas para relatos de abusos na indústria do cinema, algo que sempre foi conhecido, mas até então essas histórias não tinham rostos, não tinham protagonistas. No Brasil, a Lei Maria da Penha de 2006 deu forma e nome à violência contra a mulher. Essas narrativas contribuem para balancear o jogo do poder da narrativa dominante, que, como se sabe, ainda é predominantemente masculina, branca, heterossexual e elitizada. Assim, não é surpreendente que as distopias escritas por mulheres nesse século estejam tão ligadas a essa questão. É uma inquietação do nosso tempo.

CF: Você define distopia como um retrato de uma sociedade que é pior que aquela em que o leitor/autor vive, baseada em medos coletivos. Quais medos você acredita que estão por trás dessa preocupação com a narração?

MS: O medo de ter sua experiência de vida desvalidada, ser silenciada, ter justificado o abuso com seu corpo. Mas acredito que, principalmente, o medo de que as coisas fiquem as mesmas, que as mesmas vozes continuem a ser ouvidas e que não haja mudança social radical.

CF: Você considera possível extrapolar a questão da narração e pensar a arte como um todo na definição do que nos faz humanos? Como essas distopias abordam, se abordam, outras formas de arte que não a literatura?

MS: O Brian Boyd, um dos teóricos que utilizo em minha pesquisa, trabalha com essa premissa: de que a arte nos faz humanos e que a narração é uma forma de arte. Apesar da narrativa ter proeminência nos romances selecionados para minha pesquisa, outras formas de arte também estão presentes. É o caso da trilogia MaddAddam, da Margaret Atwood, em que os seres geneticamente modificados a partir de humanos, os Crakers, começam a desenvolver formas de arte como a representação imagética, a dança e a música. Essa relação com a arte os faz ser considerados humanos não apenas pela leitora, mas também pelos demais personagens do romance.

CF: Pensando na conexão inescapável entre raça, classe e gênero, você encontrou nos romances escolhidos essa inter-relação? Se sim, ela se relaciona com a questão da narração?

MS: Apesar de o foco principal ser o questionamento daquilo que é humano, raça, classe e gênero atravessam os romances. Até mesmo porque o humano tradicionalmente foi associado ao masculino, branco, heterossexual e culto/elitizado durante séculos. O que se desvia dessa norma é frequentemente considerado mais próximo ao animal, à natureza, ao que é selvagem. Os romances selecionados muitas vezes se utilizam dessa crítica à categoria humano justamente para mostrar o quanto ela é construída com base nesses preconceitos e nesse pequeno recorte do que na verdade é a humanidade e em como essa ideia de “humano” desumanizou pessoas ao longo dos séculos para justificar genocídio e escravidão.

As escritoras Nalo Hopkinson, Nnedi Okorafor e N. K. Jemisin

Alguns romances fazem a crítica a raça, classe e gênero de uma forma mais contundente, como é o caso de Quem Teme a Morte, de Nnedi Okorafor, em que uma mulher preta e pobre, considerada menos humana pelo povo que subjuga o seu, usa sua própria história e seus poderes mágicos para contestar a cultura dominante. O mesmo acontece com a trilogia A Terra Partida, de N.K. Jemisin, em que a narrativa que literalmente irá moldar o mundo é feita a partir de uma pária social que desafia o discurso dominante e propõe ideias e valores mais igualitários para uma sociedade futura.

CF: Para além da intenção do autor ao escrever o romance, você aponta para a importância do papel do leitor na recepção da obra, em especial no processo de reconhecimento da sociedade distópica como uma extrapolação, ou exagero, de um medo que ele, o leitor, também tem. Nesse sentido, distopias podem ficar “datadas”?

MS: Seguindo essa perspectiva, sim. A distopia como a conhecemos hoje ainda é um gênero recente, fruto do século XX, e muitas questões propostas por obras no início desse século ainda são medos coletivos muito presentes na nossa sociedade como o medo da perda de direitos, do apagamento do indivíduo, do autoritarismo, da desigualdade social e da escassez de recursos naturais. Talvez, num futuro, esses medos não sejam mais uma preocupação presente e leitores das próximas décadas ou séculos possam ter dificuldade de entender a trilogia MaddAddam, de Margaret Atwood, ou mesmo Jogos Vorazes, de Suzanne Collins. Essa é uma visão esperançosa.

CF: Por último, para ajudar aqueles leitores que querem entrar no mundo da pesquisa acadêmica na área de Literatura, você pode explicar um pouco como foi o processo para criar o seu projeto de pesquisa de doutorado, do surgimento da ideia até a concepção de um objetivo e problema de pesquisa?

MS: Minha trajetória com esse tema começou em 2010, ainda na Iniciação Científica, quando pesquisei o romance Oryx e Crake, de Margaret Atwood. A partir daí, continuei os estudos da utopia e da distopia, o que culminou na minha dissertação de mestrado que foi sobre como a narrativa se constitui uma estratégia de sobrevivência nos romances Oryx e Crake e O ano do dilúvio, de Margaret Atwood.

Para o doutorado, foquei em uma questão que me deixou inquieta na conclusão da minha dissertação, que era a ideia de que a narrativa talvez fosse um assunto proeminente em obras distópicas escritas por mulheres no século XXI. Comecei, então, a ler distopias recentes e prestar atenção se a questão da narrativa aparecia de alguma forma e me deparei com cada vez mais e mais livros escritos por mulheres que tinham esse tema como algo central. No entanto, tudo ainda estava em um caráter observacional e não muito consolidado.

Para montar o projeto de doutorado, tive que levantar uma hipótese que poderia ou não estar errada. Simplesmente dizer que a narrativa era uma questão presente nessas obras não era o suficiente para sustentar um argumento acadêmico, então comecei a pensar com o que a narrativa se relacionava, para que fins era usada dentro dessas obras. Foi assim que me deparei com a questão de desafiar aquilo que é humano.

Com essa proposição formulada montei meu projeto e me amparei muito no trabalho de Ildney Cavalcanti, que mapeou as distopias das décadas de 80 e 90 em sua relação com a linguagem. Foi quando decidi que precisava de um volume maior de romances para dar corpo ao meu argumento. Diferente do meu mestrado, onde foquei na análise de duas obras, com esse projeto eu estava tentando definir uma tendência dentro de um gênero e para isso precisava de um corpus mais extenso. Cheguei ao número de trinta e oito romances distópicos publicados em língua inglesa entre os anos 2000 e 2018 selecionados para a tese. Para compor esse corpus, escolhi obras de literatura infanto-juvenil, jovem adulto e adulto que tivessem como tema central a questão da narrativa para questionar o que é humano.

Eu me deparei então com a impossibilidade que é analisar profundamente trinta e oito romances. Então decidi, já no projeto inicial, focar em três livros: The Telling, de Ursula K. Le Guin, Os deuses de pedra, de Jeanette Winterson, e MaddAddamm, de Margaret Atwood. Esses três livros delimitam as três pontas do triângulo dessa tendência de usar a narrativa para questionar o que é humano: histórias fazem os humanos melhores, histórias definem os humanos e histórias são a fundação de uma nova humanidade. A escolha desses romances se deu porque eles mais explicitamente exemplificam essas ideias e os demais livros foram agrupados de acordo com essas categorias e analisados pontualmente.

Ao longo da escrita da tese, novas ideias foram surgindo, bem como novas perspectivas de análises, mas esse foi o alicerce no qual me baseei desde a concepção do projeto inicial.

CF: A sua tese está escrita em língua inglesa. Além das publicações listadas abaixo em língua portuguesa, têm outras indicações para interessados no tema?

MS: Indico o trabalho do grupo Literatura e Utopia, que tem vídeos de seu último evento online no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Uuf7HRep7Ls

Também dá para acompanhar o trabalho do grupo de estudos que faço parte, o Neufic – Núcleo de Estudos de Utopismos e Ficção Científica. Para saber das datas dos encontros, basta assinar a Newsletter:

Referências

CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura” (1988) in Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2017, p.169-1941.

SÁ, Melissa Cristina Silva de. “Stories that make us humans: Twenty-First-Century dystopian novels by women”. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/34288

SÁ, Melissa C. S.. O duplo como paródia em O Ano do Dilúvio. EM TESE (BELO HORIZONTE. ONLINE), v. 23, p. 275, 2018. Disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/emtese/article/view/11764

SÁ, Melissa C. S.. Corpo e violência em Oryx e Crake e O Ano do Dilúvio, de Margaret Atwood. In: Luciana Calado Deplagne; Ildney Cavalcanti. (Org.). Utopias sonhadas / Distopias anunciadas: feminismo, gênero e cultura queer na literatura. 1ed.João Pessoa: UFBP, 2019, v. , p. 131-148.


[1] “Histórias que nos fazem humanos: distopias do século XXI escritas por mulheres” – a tese foi redigida em inglês porque foi desenvolvida na área de concentração de Literaturas de Língua Inglesa no Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da FALE/UFMG.

[2] No original: “these novels strongly emphasize how storytelling creates and shapes not only individuals but societies too. The line between realistic and non-realistic fiction is blurred in the selected novels, because in some of them stories literally change the world, as characters, by rewriting a book, also rewrite the history and memory of a society using unexplained magical powers. Stories and their aftermaths seem a trend in women’s dystopian fiction, and they are the means of change”

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A coluna de ciências humanas e sociais em 2021

Nos últimos anos, no Brasil, as ciências humanas e sociais têm sofrido ataques ideológicos e cortes de verbas. Por exemplo, em março de 2020, o governo federal excluiu essas áreas do edital de bolsas de iniciação científica do CNPq para priorizar as “tecnológicas”, consideradas como áreas que dão suposto “retorno imediato”. Tal pensamento, errôneo e simplório, não é capaz de perceber a extrema importância das pesquisas de humanas e sociais para a sociedade brasileira. Mesmo agora, enquanto aguardamos a tão esperada vacinação possibilitada pelos esforços de milhares de cientistas mundo afora, percebemos que as humanas e sociais são sim fundamentais. Por exemplo, muitos procuraram na história respostas para o momento em que vivemos. As pesquisas sobre outras pandemias, em especial a da gripe espanhola em 1918, nos mostram que esta também vai passar e comemoraremos o próximo carnaval de forma ainda mais intensa do que em 1919. Já a sociologia aponta o papel central que o SUS tem, não só no combate à pandemia, mas no sistema de saúde como um todo, principalmente em um país tão desigual quanto o Brasil.

A pandemia de covid-19 nos mostrou, também, que precisamos de arte. As lives de artistas, os livros, os filmes têm nos ajudado a suportar esse período tão difícil com mais leveza. Além disso,as pesquisas sobre esses produtos culturais são essenciais para compreender como as sociedades produzem e consomem esses bens.

Precisamos, mais do que nunca, de saúde mental. Pesquisas têm mostrado como houve aumento e agravamento no número de transtornos mentais durante a pandemia. Mapear e pensar estratégias é imprescindível e as ciências humanas e sociais têm papel central na análise e resolução desses problemas.

Estes foram apenas alguns exemplos de como as ciências humanas e sociais são importantes durante a pandemia, mas essa importância se estende muito além. Nas palavras de Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências: “As ciências humanas e sociais têm um alcance amplo e importante para o futuro do país, muito além de um retorno imediato: ensinam a pensar, condição necessária para a construção de uma sociedade ilustrada, democrática e produtiva.”

Por tudo isso, decidimos que, neste ano de 2021, aqui no blog das Cientistas Feministas, a coluna de ciências humanas e sociais vai privilegiar as pesquisas recentes desenvolvidas no país por jovens pesquisadoras, em universidades públicas. Embora maioria nessas áreas, as mulheres, com bastante frequência, ainda não têm seu trabalho reconhecido e as pesquisas feitas pelos pares masculinos acabam recebendo mais destaque. Assim, durante todo o ano de 2021, as leitoras e leitores do blog poderão descobrir pesquisas recentes feitas por cientistas brasileiras durante seus mestrados e doutorados em instituições de ensino e pesquisa públicas, tão fundamentais para o desenvolvimento de nossa ciência.

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Pandemia de COVID-19: Quando a Saúde precisa encontrar as Ciências Humanas

Créditos: Canva

Nos últimos dias, temos acompanhado o colapso do sistema de saúde do Estado do Amazonas, especialmente na capital, Manaus, que sofre com a falta de cilindros de oxigênio nos hospitais. Situação que se agrava diante do recorde de internações por COVID-19 na cidade.¹ Para piorar, muitas pessoas estão infectadas pelo que foi identificado como uma nova cepa do vírus, ou seja, uma nova variante dele, que parece capaz de se espalhar mais depressa dos que as outras cepas até então verificadas no país.² Tudo isso integra um preocupante cenário mais amplo: o Brasil tem, hoje, a maior média diária de casos de COVID-19 desde o início da pandemia. São mil mortes diárias pela doença.³ O número assusta, mas não se pode dizer que surpreende.

Desde a primeira quinzena de agosto de 2020, o infectologista Jesem Orellana, pesquisador da Fiocruz-Amazônia, alerta para a subida da curva de óbitos na capital amazonense. Em setembro, os números continuaram subindo. A equipe de Orellana, então, recomendou o lockdown ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à Secretaria de Saúde do Estado.² Apesar do aumento do número de mortes e casos confirmados de COVID-19 no Amazonas, o governador Wilson Lima cedeu às pressões dos comerciantes e permitiu a reabertura do comércio não essencial: bares, restaurantes, cinemas, casas de show.4 O estímulo à economia serviu de justificativa para a retomada de atividades comerciais que, meses depois, elevariam ainda mais o número de infectados e de mortes.

Manaus não foi a única capital a ignorar pesquisadores e profissionais de saúde. O Departamento de Medicina Integral, Familiar e Comunitária da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (DMIFC-UERJ), em cartas abertas ao público, há meses aponta como o enfrentamento à pandemia tem evoluído de forma equivocada e lenta no país, com negação de sua gravidade ou mesmo de sua existência. Em dezembro de 2020, o DMIFC-UERJ alertou que, enquanto protocolos de saúde estavam sendo flexibilizados e acelerados, com grandes interesses econômicos e políticos envolvidos nessa corrida, não havia movimentação para garantir os recursos necessários à aplicação da(s) futura(s) vacina(s), treinamento de profissionais ou ao estabelecimento da logística de distribuição — problemas que se refletem hoje, no baixo número de vacinas disponíveis até mesmo para um único segmento dos grupos prioritários.5 À época, não havia sequer trabalhos coordenados nas esferas municipal, estadual e federal para garantir uma vacinação segura.

A denúncia se torna mais grave ao considerarmos a existência do Programa Nacional de Imunizações (PNI), disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é responsável pela aplicação de mais de 300 milhões de doses anuais de vacinas, soros e imunoglobulinas por todo o território nacional. Contudo, o desmonte do SUS afeta todos os seus serviços, inclusive o PNI. “A política do atual governo reforça a iniciada em 2016, a partir do golpe de estado. Esta orientação, para a área da saúde, visa o desmonte do SUS como política pública”, esclarece Maria Inez Padula Anderson, professora do DMIFC-UERJ, em entrevista concedida também em dezembro ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Ela continua: “Todas as informações — que deviam vir de forma sistemática e organizada por parte do Ministério da Saúde — só vêm à tona por pressão judicial e/ou popular e/ou da classe científica”. Por fim, sentencia: “O presidente e forças políticas, que atuam através de supostas práticas religiosas e fake news, promovem — de forma proativa e deliberada — desconfiança e insegurança da população em relação à vacina”.

Vale lembrar que profissionais de saúde de boa parte dos Estados permanecem sem instruções claras de como funcionará o início do processo de imunização no Brasil. Além disso, muitos profissionais de saúde, entre eles, os médicos da rede pública do Rio de Janeiro, têm atuado em condições precárias, com atraso ou falta de pagamentos, cortes nos direitos trabalhistas e escassez de equipamentos de proteção individual adequados durante a pandemia.6 Até o dia 14 de janeiro de 2021, entre os nove Estados que abrigam a Amazônia brasileira, foram registrados 739 falecimentos de indígenas, pertencentes a 103 povos distintos. Apesar disso, no auge da crise de desabastecimento de oxigênio em Manaus, o Ministério da Saúde pressionou a distribuição de tratamento precoce contra COVID-19 pela rede pública de saúde estadual e municipal. O chamado kit covid contém remédios com cloroquina, hidroxicloroquina, além do antibiótico azitromicina e até do antiparasitário ivermectina, que são administrados como tratamento preventivo para a doença, mesmo sem terem eficácia comprovada.7 Diferentes cidades da região norte do Brasil já decretaram estado de calamidade pública devido à falta de condições para atender aos infectados pela COVID-19. Pessoas estão morrendo em casa, por sufocamento — dos pulmões e dos hospitais.

Nessas horas, o diálogo com as Ciências Humanas seria proveitoso. Os estudos sociais apontam, há décadas, que não existe economia fortalecida com uma população fragilizada. Que comportamentos individuais se inserem dentro de conjunturas mais amplas, que devem ser levadas em consideração. Que todo discurso é dotado de intencionalidade, contribuindo para determinadas agendas. Por isso, devemos nos atentar aos interesses por trás dos discursos proferidos pelos principais responsáveis (Governo Federal, Ministério da Saúde, institutos de pesquisa, laboratórios farmacêuticos etc.) pelo gerenciamento da pandemia. Eles visam o bem maior? Têm embasamento empírico, ou seja, se apoiam no registro de fenômenos e estudos que acontecem durante o cenário pandêmico?

Na área de Comunicação Social, particularmente, existem trabalhos dedicados a mapear redes de informação (ou desinformação), buscando entender como essas comunidades se formam, os agentes que as sustentam, os valores e pautas que nelas circulam, os arranjos (inclusive midiáticos) que permitem sua continuidade.8 Diferentes estudos apontam que as mensagens que alguém assimila e transmite dialogam com aquilo em que já acredita ou que gostaria que se comprovasse. Isso reforça sua visão de mundo, constrói sensação de segura. Para dialogar com essas pessoas, portanto, seria preciso entender de que referenciais elas partem ao ler os acontecimentos e notícias ao seu redor. Assim, é possível pensar estratégias de comunicação adequadas para alcançar diferentes grupos sociais de forma mais eficiente, checando como as mídias (tradicionais ou não) podem ser acionadas nesse processo. Foi esse o esforço empreendido na China para orientar a população sobre os cuidados necessários para conter a circulação do coronavírus, que se deu com apoio da Associação Chinesa de Ciência e Tecnologia (CAST). Ela abriga um departamento de comunicação científica, cuja função é servir de ponte entre os pesquisadores e o público para promover a compreensão da ciência. Durante a pandemia, a CAST garantiu que as campanhas informacionais alcançassem cada canto do território chinês, por variados meios: mídia impressa, rádio, TV e plataformas online. 9

Por outro lado, existem indivíduos e veículos comunicacionais que deliberadamente disseminam informações distorcidas ou falsas, tendo em vista algum objetivo (político, social, econômico) que os contemple. É necessário mapear esses agentes, aplicando sobre eles penas correspondentes ao dano que tenham causado. Reformulações nas leis vigentes propostas por pesquisadores e profissionais do Direito, da Comunicação, das Ciências Políticas e de áreas afins buscam atualizar o código penal para que abarque crimes como o espalhamento intencional de fake news.10

A junção dessas diferentes análises e pesquisas permite traçar planejamentos mais assertivos por parte dos poderes públicos. Por exemplo, o isolamento social de uma faxineira que ganha salário mínimo e divide um sobrado com outras cinco pessoas é diferente do isolamento social de um engenheiro que recebe salário alto, mora em um apartamento espaçoso e consegue trabalhar de casa. Para evitar que pessoas que se encaixam na primeira categoria se exponham ao vírus para complementarem a renda, um auxílio-emergencial de maior valor deve ser concedido a elas, em tempo hábil. Assim como a comunicação sobre o isolamento social dirigida à faxineira e ao engenheiro precisa ser capaz de dialogar com as vivências de cada um deles.

Conversar com representantes de comunidades ou grupos sociais, entender suas demandas, conhecer seu estilo de vida. Entre outros efeitos, esses métodos, comuns em trabalhos qualitativos nas Ciências Humanas, facilitariam a implementação de hábitos recomendados pelos pesquisadores para reduzir a circulação do coronavírus entre moradores de determinadas regiões de uma cidade ou Estado. A área de Humanidades aponta e registra problemas que, posteriormente, podem ser resolvidos por intervenções de outras áreas. Durante a pandemia, por exemplo, há empresas que adotam o trabalho remoto. Em outras, os funcionários precisam trabalhar presencialmente, seja porque sua atividade só pode ser desempenhada dessa forma, seja por se tratar de uma decisão empresarial que não considera o contexto pandêmico.11 Esses trabalhadores precisam utilizar o transporte público tanto na ida quanto na volta do trabalho. É necessário, portanto, realizar um planejamento para que não haja aglomerações no trajeto que esses trabalhadores costumam fazer. E assim por diante.

Como os pesquisadores da Saúde, os cientistas de Humanas também prezam pela integridade e dignidade do ser humano, entendendo que ele se insere em um corpo social. Corpo este que rege todas as relações e estruturas que atravessam as pessoas e as comunidades às quais pertencem. Se a pandemia ensina algo, é que o bem mais valioso que temos é a vida. Ensinamento que os povos originários sul-americanos há muito já transmitem, e vêm sendo retomado nos trabalhos de diferentes cientistas sociais (muitos deles, também indígenas). No combate à COVID-19, as Ciências Biológicas salvam vidas. A luta das Ciências Humanas é assegurar que as vidas salvas sejam acolhidas, para que pulsem com saúde, respeito, potência, construindo um Brasil mais funcional e justo.

1 G1 AM. Superlotado, maior pronto-socorro do AM recusa novos pacientes. [15/01/2021]. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/15/superlotado-maior-pronto-socorro-do-am-para-de-receber-novos-pacientes.ghtml

2 Uol Notícias. ‘Explosão de casos em Manaus é de nova cepa’, aponta infecciologista. [15/01/2021]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2021/01/15/explosao-de-casos-em-manaus-e-de-nova-cepa-aponta-epidemiologista.htm

3 Agência Brasil. Covid-19: Brasil tem 8,39 milhões de casos e 208,1 mil mortes. [15/01/2021]. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/covid-19-brasil-tem-839-milhoes-de-casos-e-2081-mil-mortes

4 G1 AM. Publicado decreto que estabelece as regras de reabertura do comércio no Amazonas. [28/12/2020]. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2020/12/28/publicado-decreto-que-estabelece-as-regras-de-reabertura-do-comercio-no-amazonas.ghtml

5 Uol Notícias. Secretário de SP admite início tímido de vacinação e projeta mais doses. [18/01/2021]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/18/secretario-de-sp-admite-inicio-timido-de-vacinacao-e-projeta-mais-doses.htm?cmpid=copiaecola

6 Conforme denunciado pelo Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro. Ver mais em: https://www.facebook.com/SinMedRio/posts/1691484071032730

7 Uol Notícias. MPF investigará prioridade à cloroquina e não ao oxigênio em Manaus. [15/01/2021]. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/15/mpf-investigara-improbidade-por-prioridade-a-cloroquina-e-nao-ao-oxigenio.htm

8 Thaiane Oliveira tem trabalhado os conceitos de desinformação científica e fake sciences ligadas à saúde. Para mais investigações sobre redes de desinformação, checar os trabalhos de Afonso de Albuquerque, Viktor Chagas e Marcelo Alves. Todos os pesquisadores aqui referidos pertencem ao PPGCOM UFF.

9 Na província chinesa de Zhejiang, por exemplo, medidas de comunicação científica multinível foram adotadas para prevenção e controle de doenças, o que inclui a COVID-19. Ver mais em: https://go.nature.com/3p4mwYT

10 ConJur. Especialistas afirmam: ‘Lei das Fake News’ é fundamental para o Brasil. [10/07/2020]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-10/especialistas-afirmam-lei-fake-news-fundamental-brasil

11 A precarização do trabalho durante a pandemia tem sido tema de discussão em diferentes áreas e trabalhos das Ciências Humanas. Checar, por exemplo, a entrevista concedida ao Jornal da USP por Wilson Amorim, professor associado do Departamento de Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo: https://jornal.usp.br/atualidades/pandemia-da-covid-19-acentuou-precarizacao-das-relacoes-de-trabalho/