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A circulação forçada de trabalhadores e o grande número de casos de Covid-19 nas periferias

O núcleo “Direito à Cidade” do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade – FAU/USP), coordenado pelas professoras Raquel Rolnik e Paula Santoro, publicou recentemente uma pesquisa inovadora sobre a relação entre o deslocamento para trabalho dentro da cidade de São Paulo e a disseminação do Covid-19 nas periferias.

Os pesquisadores envolvidos propõem uma nova maneira de entender o avanço da pandemia na capital que contraria a associação, pouco evidenciada, entre pobreza, densidade populacional e contágio. Ou seja, a ideia de que as zonas mais pobres da cidade são as mais atingidas devido às condições precárias de habitação, por exemplo – a máxima “onde tem favela, tem pandemia” (Marino et al, 2020) – não se sustenta. Ao contrário, o resultado do estudo do LabCidade aponta para uma outra causa: a circulação da população periférica em transporte público para outras regiões pela necessidade de trabalhar.

O método da pesquisa envolveu o cruzamento de dados de várias fontes: registros do SUS de hospitalizações por SRAG (Síndrome Respiratória Aguda e Grave) não identificada e Covid-19 até o dia 18 de maio, que incluíam o CEP de residência dos internados; a Pesquisa Origem Destino (2017) do Metrô; e dados da SPTrans a partir de GPS dos ônibus para identificar o ponto de origem e destino de cerca de 3 milhões de viagens realizadas apenas no dia 5 de junho de 2020. Dentre essas viagens, os pesquisadores identificaram aquelas pessoas que usam o transporte púbico como forma primeira de chegar ao local de trabalho, buscando o perfil de pessoas sem ensino superior e em cargos não executivos. A justificativa para essa seleção é a probabilidade alta de que as pessoas com ensino superior em cargos executivos ou profissionais liberais estejam trabalhando de casa, no sistema de “home office”.

O resultado foi a produção do mapa abaixo, que indica uma grande equivalência entre as zonas com a maior incidência de internações e as zonas com maior número de residentes circulando pela cidade para ir ao trabalho.

Os pesquisadores ressaltam que ainda não foi possível determinar onde teria ocorrido o contágio desses casos: se na origem (área de residência), no percurso (transporte público) ou se no destino (área do trabalho). Contudo, a conclusão evidente é que “quem está sendo mais atingido pela Covid-19 são as pessoas que tiveram que sair para trabalhar” (Marino et al, 2020).

Parece alarmante, portanto, que as prefeituras e governos estaduais baseiem seus planos de reabertura a partir de dados de zoneamento que não levam em conta nem esse fluxo diário interno de trabalhadores, nem o fluxo diário de trabalhadores para as cidades menores do entorno. A reabertura do comércio, das escolas e de outros serviços acarretaria o aumento de pessoas utilizando o transporte público, seja para trabalho, seja para consumo, o que provavelmente levará ao aumento do contágio e colocará em risco maior inclusive os profissionais da saúde tão necessários nesse contexto. Sendo assim, os pesquisadores concluem: “Se o maior número de óbitos está nos territórios que tiveram mais pessoas saindo para trabalhar durante o período de isolamento, temos que pensar tanto em políticas que as protejam em seus percursos como ampliar o direito ao isolamento paras as pessoas que não estão envolvidas com serviços essenciais mas precisam trabalhar para garantir seu sustento, o que reforça a importância de políticas de garantia de renda e segurança alimentar, subsídios de aluguel e outras despesas, e ações articuladas a coletivos e organizações locais para a proteção dos que mais estão ameaçados durante a pandemia.” (Marino et al, 2020).

Fonte:

MARINO, A., KLINTOWITZ, D., BRITO, G., ROLNIK, R., SANTORO, P. e MENDONÇA, P. “Circulação para trabalho explica concentração de casos de Covid-19”, Página do Labcidade, 30 de junho de 2020. Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-concentracao-de-casos-de-covid-19/

Página do Labcidade: http://www.labcidade.fau.usp.br/

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Inovação em diagnóstico para infarto agudo do miocárdio

     As doenças cardiovasculares, antes da pandemia do novo coronavírus, consistiam na primeira causa de morte no Brasil, sendo atualmente a segunda causa (https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/estado/2020/05/20/coronavirus-supera-cancer-e-enfarte-por-dia-ja-e-a-1-causa-de-mortes-no-pais.htm). Dentre estas doenças, o infarto agudo do miocárdio, foi projetado para ser a principal causa em 2020 (https://portalatlanticaeditora.com.br/index.php/enfermagembrasil/article/view/776/html).

     O infarto ocorre com a diminuição ou ausência do fluxo sanguíneo para o coração, comumente por obstrução de artéria coronária causada por placas de colesterol (placa de ateroma) que desencadeiam processo inflamatório. Desta forma, as células cardíacas são privadas de nutrientes e de oxigênio e podem morrer: o que conduz à lesão do órgão e prejuízo parcial ou total de sua capacidade de bombear sangue (https://www.fleury.com.br/manual-de-doencas/infarto-agudo-do-miocardio).

     São reconhecidos cinco tipos de infarto: 1) o que tem a presença da placa de ateroma como fator causador; 2) o causado por desequilíbrio entre consumo de oxigênio e sua oferta ao músculo cardíaco, pós cirurgia ou devido à anemia, por exemplo; 3) o fulminante que causa morte súbita; 4) o que sucede angioplastia coronária após a qual restam fragmentos da placa de ateroma ou há formação de trombos no stent (estrutura metálica colocada pela equipe médica no interior da artéria – Figura 1); 5) o que sucede a cirurgia de ponte de safena (https://www.hcor.com.br/hcor-explica/cardiologia/infarto-do-miocardio-adote-habitos-que-protegem-o-seu-coracao-para-poder-evita-lo/).

Foto blog 2

Figura 1: Stent. Fonte: https://folhadomate.com/noticias/cateterismo-cardiaco-pelo-sus-apenas-em-casos-de-emergencia/ e http://www.sobrice.org.br/paciente/procedimentos/angioplastia-e-colocacao-de-stent.

     Dentre os sintomas mais comuns estão dor no peito irradiando para queixo, ombro e braço esquerdos, sudorese, náusea e dificuldade para respirar. No entanto pode não manifestar-se por meio de sintomas (https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2018/10/23/infarto-dor-no-peito-nao-e-unico-sinal-veja-sintomas-e-causas-da-doenca.htm).

     Dada a importância do socorro o mais rápido possível para definir o destino do paciente, diferentes grupos de pesquisa pelo mundo tem buscado descobrir eficientes biomarcadores (para definição: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/12/13/fadiga-cronica-e-a-relacao-com-a-microbiota-intestinal/) para indicar com segurança o risco de o paciente vir a sofrer o infarto.

     São pesquisados no sangue dos pacientes com suspeita de infarto agudo do miocárdio os níveis de triglicerídeos (https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/triglicerides-e-doenca-das-coronarias-artigo/), colesterol total, HDL (lipoproteína de alta densidade), LDL (lipoproteína de baixa densidade) (https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/risco-de-ataque-cardiaco-artigo/), ácido úrico (https://saude.abril.com.br/medicina/o-acido-urico-vai-muito-alem-da-gota/) e a presença de biomarcadores como mioglobina, creatina quinase-MB e troponina cardíaca I (https://www.fleury.com.br/medico/artigos-cientificos/marcadores-bioquimicos-de-lesao-cardiaca).

     Visando reduzir o tempo de espera pelos resultados e gerar economia no diagnóstico um grupo de pesquisadores chineses, sob coordenação dos professores Yongxiang Zhao e Nongyue He da Guangxi Medical University, recentemente publicou um artigo com um novo método de diagnóstico (Figura 2) com realização simultânea de todas as medidas relatadas no parágrafo anterior (Huang et al., 2020).

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Figura 2: Novo dispositivo para realização simultânea de 8 importantes exames para determinar risco, detectar e acompanhar a evolução do infarto agudo do miocárdio. Fonte: Adaptado de Huang et al., 2020.

     Os pesquisadores desenvolveram uma tira com duas seções importantes: uma delas fica sob o local no qual o soro do paciente (amostra) é depositado. Nesta seção existem 4 diferentes regiões para detecção fotométrica (através da geração de compostos coloridos) e determinação de concentração de: 1) colesterol (TC); 2) triglicerídeos (TG); 3) HDL (HDL-C);  4) ácido úrico (UA). Os níveis de LDL podem ser calculados com base nos resultados (https://dms.ufpel.edu.br/casca/modulos/ldl-main#comp/ldl-main). Na outra seção a detecção de biomarcadores ocorre por meio de fluorescência para verificar a presença de mioglobina (Myo), creatina quinase (CK-MB) e troponina (cTnI) através de anticorpos que identificam cada uma destas proteínas.

     Os resultados de experimentos realizados utilizando-se amostras de pacientes foram mais precisos e rápidos do que os obtidos pelos métodos atualmente em uso, fazendo do novo método proposto uma interessante ferramenta para diagnosticar o infarto agudo do miocárdio e também determinar o risco de sua ocorrência em pacientes.

        

Referências

Fiorini D (2019) O ácido úrico vai muito além da gota. Disponível através do link <https://saude.abril.com.br/medicina/o-acido-urico-vai-muito-alem-da-gota/>. Acesso em: 24/08/2020.

Fleury (2020) Infarto Agudo do Miocárdio. Disponível através do link <https://www.fleury.com.br/manual-de-doencas/infarto-agudo-do-miocardio>. Acesso em 24/08/2020.

Fleury (2007) Marcadores bioquímicos de lesão cardíaca. Disponível através do link <https://www.fleury.com.br/medico/artigos-cientificos/marcadores-bioquimicos-de-lesao-cardiaca>. Acesso em 24/08/2020.

HCor (2020) Infarto agudo do miocárdio: adote hábitos saudáveis e proteja seu coração. Disponível através do link <https://www.hcor.com.br/hcor-explica/cardiologia/infarto-do-miocardio-adote-habitos-que-protegem-o-seu-coracao-para-poder-evita-lo/>. Acesso em 24/08/2020.

Huang L, Zhang Y, Su E et al. (2020) Eight biomarkers on a novel strip for early diagnosis of acute myocardial infarction. Nanoscale Adv 2: 1138.

Kruse, T (2020) Coronavírus supera câncer e enfarte; por dia, já é a 1ª causa de mortes no Brasil. Disponível através do link <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/estado/2020/05/20/coronavirus-supera-cancer-e-enfarte-por-dia-ja-e-a-1-causa-de-mortes-no-pais.htm >. Acesso em 23/08/2020.

Pronin T (2018) Infarto: dor no peito não é único sinal; veja sintomas e causas da doença. Disponível atrvés do link <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2018/10/23/infarto-dor-no-peito-nao-e-unico-sinal-veja-sintomas-e-causas-da-doenca.htm>. Acesso em 24/08/2020.

Silva AS, Ferraz MOA, Biondo CS, de Oliveira BG (2018) Características sociodemográficas das vítimas de infarto agudo do miocárdio no Brasil. Enfermagem Brasil 17(6): 1-4.

UFPEL (2014) Calculadora de LDL Colesterol. Disponível através do link <https://dms.ufpel.edu.br/casca/modulos/ldl-main#comp/ldl-main>. Acesso em 24/08/2020.

Varella D (2011) Triglicérides e doença das coronárias. Disponível através do link <https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/triglicerides-e-doenca-das-coronarias-artigo/>. Acesso em 24/08/2020.

Varella D (2011) Risco de ataque cardíaco. Disponível através do link <https://drauziovarella.uol.com.br/drauzio/artigos/risco-de-ataque-cardiaco-artigo/>. Acesso em 24/08/2020.

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O Grande Censo Cósmico: Contando e Pesando Gigantes no Céu

Aglomerado de galáxias CL0024+17. Créditos: NASA/ESA/HST.

Aglomerados de galáxias são os maiores objetos no universo conectados pela gravidade. Como descrito neste post, basicamente eles são compostos em grande parte por matéria escura (~80%), matéria bariônica (isto é, toda matéria que nos rodeia e que podemos ver) e grande quantidades de gás extremamente quente. Dada suas proporções enormes, podemos dizer que os aglomerados de galáxias são verdadeiros gigantes no céu. 

Além de serem objetos muito bonitos, os aglomerados podem ser usados para tentar entender a evolução do nosso universo, numa área de pesquisa que denominamos Cosmologia. Na Cosmologia estudamos a origem, estrutura, composição e evolução do universo como um todo. Certo, mas como usar aglomerados para estudar Cosmologia? 

Imagine um grande “censo cósmico”, no qual queremos catalogar quantos aglomerados existem, como eles se distribuem, a que distância estão de nós e o quanto eles pesam. Colocando essas informações juntas e comparando com modelos que tentam descrever nosso universo, podemos saber quais desses modelos funcionam ou não. Atualmente, o modelo padrão da Cosmologia é o Lambda-CDM (do inglês: Lambda Cold Dark Matter), vulgo Big Bang. Este modelo é o mais bem sucedido até o momento, pois é o que melhor explica os dados astronômicos observados. No entanto, é importante lembrar que existem outros modelos que tentam descrever o universo (por exemplo, Universo com Ricochete, Gravidade Emergente, etc), e que estão sendo desenvolvidos e testados. Quem sabe no futuro, um deles passe a explicar melhor nosso universo.

Contando aglomerados no céu 

Mas vamos lá, assumindo que Lambda-CDM é o modelo que descreve e prediz corretamente várias características do nosso universo, existem diferentes testes que podem ser feitos para validá-lo. Usando aglomerados de galáxias, podemos fazer o seguinte teste: contar quantos aglomerados de certa massa existem em uma dada distância e direção do céu. Contamos os mais próximos de nós e daí vamos contando até os que estão cada vez mais longe. O modelo Lambda-CDM prevê quanto deve dar essa contagem, ou seja, a abundância de aglomerados. Em especial, um parâmetro desse modelo (da abundância de aglomerados) que podemos obter de forma precisa é o chamado S8, que mede o quanto a matéria (galáxias, aglomerados de galáxias e matéria escura) se aglomera no universo. Um valor alto para S8 significa que a matéria se aglomera mais, portanto, temos um universo menos homogêneo. Um valor mais baixo para S8 significa que a matéria se aglomera menos. Portanto, temos um universo mais homogêneo. Veja a figura abaixo:     

Simulações de 2 universos com diferentes valores para o parâmetro cosmológico S8. Uma mostrando um universo onde a matéria se aglomera menos (esquerda) e outra mostrando um universo onde a matéria se aglomera mais (direita). Créditos: adaptado de Warren et al. (Los Alamos).

O problema do S8: universo adulto x universo jovem 

As medidas de S8 com aglomerados de galáxias são medidas do universo atual, que também podemos nos referir como  “universo adulto”. No entanto, também é possível medir S8 a partir de dados de quando o universo era muito mais “jovem”. Para isso, usamos a Radiação Cósmica de Fundo de Microondas (RCFM). Essa radiação é um resquício do Big Bang e foi detectada em 1965 pelos físicos estadunidenses Arno Penzias e Robert Wilson. Ao medir as propriedades desta radiação podemos inferir os parâmetros cosmológicos do Lambda-CDM, como o S8

Medidas de S8 do universo adulto usando a abundância de aglomerados no ótico (ou seja, na frequência da luz visível) e medidas do universo jovem usando a RCFM têm apresentado uma certa inconsistência. Se essa inconsistência for real e o valor de S8 for realmente baixo, igual ao obtido com aglomerados, teríamos evidência de que o Lambda-CDM está incompleto. No entanto, como as medidas de S8 da RCFM são muito precisas e estão em acordo com o Lambda-CDM, é mais provável que as medidas do universo adulto estejam sofrendo com alguma fonte de erros sistemáticos, ou seja, erro nas medidas que precisamos entender e corrigir. Por exemplo, no caso dos aglomerados, pode ser que estejamos pesando eles incorretamente. 

Pesando aglomerados: uma tarefa difícil

Para pesar aglomerados, usamos o chamado efeito de lenteamento gravitacional, que se baseia no desvio das luz em torno de um objeto astronômico massivo, como galáxias e aglomerados de galáxias (veja este post). No lenteamento gravitacional, temos a seguinte configuração: o observador aqui na Terra, um objeto massivo na nossa linha de visão (também chamado de lente) e galáxias de fundo atrás desse objeto (as fontes) a uma distância muito maior. Quando a luz das galáxias-fontes passa próximo da lente ela sofre um desvio devido ao intenso campo gravitacional. Como resultado, obtemos uma imagem distorcida ou até mesmo imagens múltiplas das galáxias-fontes. O valor da distorção e o número de imagens múltiplas vai depender do alinhamento entre observador-lente-fontes, das distâncias envolvidas e de quão massiva é a lente. Quando o alinhamento é quase perfeito entre observador-lente-fontes temos o regime de lenteamento forte, com a produção de arcos gigantes e imagens múltiplas. No entanto, essa configuração é rara de acontecer. O que mais acontece é termos pequenas distorções na forma das fontes (veja a figura abaixo), que não podem ser vistas a olho nu e nem medidas precisamente para uma lente apenas. Portanto, temos que juntar várias lentes para ter uma medida significativa destas distorções na forma das galáxias-fontes e consequentemente, inferir uma massa média para as lentes. Neste caso, estamos no regime de lenteamento fraco. Para juntar as lentes e determinar a sua massa total, precisamos saber sua distância até nós e ter uma ideia do quão massivas elas são. 

Representação do efeito de lenteamento gravitacional fraco. Quando não há um aglomerado servindo de lente, a luz das galáxias de fundo não sofre desvio (linhas azuis),  consequentemente não vemos uma mudança em suas formas (balão azul). Mas quando temos um aglomerado entre o observador e as galáxias de fundo, a luz dessas galáxias sofre um desvio (linhas amarelas) e como resultado observamos uma mudança em suas formas (balão amarelo). Para um melhor entendimento, a mudança na forma aqui apresentada está muito exagerada. Na realidade, a mudança na forma das galáxias devido ao lenteamento fraco é imperceptível a olho nu. Créditos: Jessie Muir (2020).

Para a medida da distância usamos o desvio para o vermelho, que chamamos de “z”. Para entender o conceito de z, podemos fazer uma analogia a um outro fenômeno físico chamado “efeito Doppler”, que descreve a mudança no comprimento de onda e na frequência das ondas emitidas por uma fonte que está em movimento em relação ao observador. Para visualizar esse conceito: imagine uma ambulância vindo em sua direção, o som da sirene (ou seja, a onda sonora) que escutamos parece ficar cada vez mais agudo. Na linguagem da física, isso significa dizer que o seu comprimento de onda diminui e sua frequência aumenta. Mas se a ambulância está se afastando de nós, o som fica mais grave, ou seja, o comprimento de onda aumenta e sua frequência diminui. No caso da luz, que é uma onda luminosa, o efeito que observamos é uma mudança na cor do objeto que emite a luz. Se o objeto luminoso está se aproximando do observador, seu comprimento de onda se move para a região mais azul do espectro eletromagnético e dizemos que houve um desvio para o azul. Mas se o objeto luminoso está se afastando do observador, seu comprimento de onda se move para a região mais vermelha do espectro, portanto, houve um desvio para o vermelho (z). Sabemos que o universo está se expandindo aceleradamente, e portanto as galáxias estão se afastando de nós. Isso significa que majoritariamente medimos os desvios para o vermelho das galáxias que estão se afastando, e com isso podemos inferir a sua distância até nós. 

Na prática, quando obtemos a luz das galáxias, podemos decompô-la e obter um espectro. Este espectro é composto por linhas características de emissão e absorção. Sabemos qual a posição destas linhas num espectro num referencial de repouso, ou seja, num espectro em laboratório. A medida que as galáxias se afastam, sua as linhas características se deslocam para região vermelha do espectro eletromagnético. Ao medir o deslocamento destas linhas no espectro observado em comparação com o de repouso, medimos sua distância até nós, ou seja z (veja figura abaixo).    

Exemplo do espectro de um objeto se afastando de nós (imagem no topo). As linhas características de emissão e absorção se deslocam para a parte vermelha do espectro. Fazendo a diferença entre a posição das linhas observadas e no referencial de repouso (imagem inferior), obtemos a medida da distância deste objeto, ou seja, seu desvio para o vermelho z. Créditos: European Southern Observatory.

Agora que sabemos como medir a distância até os aglomerados, antes de obter sua massa total via lenteamento fraco, precisamos ter uma estimativa aproximada de quão massivos eles são. Para isso, podemos considerar diferentes propriedades dos aglomerados como por exemplo, sua luminosidade, a temperatura do gás que o compõe, ou o número de galáxias vermelhas (grandeza que é comumente chamada de riqueza), etc. Essas propriedades observadas são aproximações para a massa dos aglomerados. Vamos focar no caso da riqueza como aproximação para a massa. Intuitivamente, quanto mais galáxias vermelhas um aglomerado possui, mais “rico” ele é, portanto mais massivo. Assim, podemos juntar aglomerados semelhantes, ou seja, aglomerados que estejam aproximadamente em um mesmo z e num dado intervalo de riqueza e medir seu sinal de lenteamento fraco, gerando assim perfis radiais de densidade (chamados de ΔΣ). Veja a figura abaixo.

Perfis radiais de densidade superficial projetada obtidos via lenteamento gravitacional fraco para vários intervalos de z e riqueza (λ). Ao ajustar um modelo (curvas vermelhas) aos pontos determinamos a massa média dos aglomerados. Créditos: McClintock et al. 2019 (arXiv:1805.00039)/Colaboração DES.

Uma vez que temos estes perfis via lenteamento fraco, podemos ajustar um modelo teórico para eles, obtendo assim sua massa. Em geral, usamos o perfil de densidade chamado Navarro-Frenk-White ou NFW, que tem como parâmetro a massa. O perfil NFW foi obtido a partir de simulações cosmológicas de N-corpos e descreve muito bem os perfis de densidade da escala de galáxias a aglomerados de galáxias. Finalmente, ao ajustar o NFW aos perfis medidos via lenteamento, obtemos uma estimativa média da massa dos aglomerados em um dado intervalo de z e riqueza. Um último passo antes de usar essas massas para obter a Cosmologia (ou seja, medir S8), é fazer a calibração da massa destes aglomerados, que nada mais é do que fazer um gráfico da massa total obtida em função da riqueza e ajustar uma reta. Assim, para qualquer aglomerado que saibamos a riqueza, podemos imediatamente saber sua massa total aplicando a relação linear que obtivemos.

É importante lembrar, que devido a complexidade dos processos envolvidos, ao fazer essa calibração da massa estamos sujeitos a várias incertezas durante nossas medidas e modelagem, especialmente, incertezas sistemáticas que precisam ser modeladas e corrigidas para se ter uma calibração precisa. Dentre os erros sistemáticos comumente corrigidos, podemos citar as incertezas na medida de z, desvios do perfil NFW, erro nas medidas das formas das galáxias-fontes usadas para obter o perfil de densidade, atribuição incorreta da riqueza, etc. Por tudo isso, vários projetos astronômicos (HSC, KiDS, DES) estão tentando medir a massa de aglomerados da forma mais precisa possível, o que é um requerimento importantíssimo para usá-los para a Cosmologia.

A Cosmologia com aglomerados de galáxias se encontra numa grande encruzilhada, onde precisamos entender quais incertezas estão associadas à medida da massa de aglomerados. Estas incertezas estão afetando nossas medidas do universo adulto de tal forma que os resultados atuais mostram um universo mais homogêneo do que o esperado pelo Lambda-CDM e medido com a RCFM. Um grande esforço para entender estas incertezas deve ser feito, antes de se apontar que há evidência de que o atual modelo padrão da Cosmologia não é adequado para descrever o funcionamento do nosso universo. Por mais interessante que seja dizer que há Física nova no horizonte, precisamos manter os pés no chão e pensar em novas ideias para lidar com os erros em nossas medidas. Afinal, queremos fazer o melhor censo cósmico da história do universo!  

           

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As plantas são seres inteligentes?

As plantas são vistas muitas vezes como seres inertes que não respondem da mesma forma, nem na mesma rapidez, que animais ao seu ambiente. Assim, de forma depreciativa, chamamos pacientes em coma de “vegetais” ou pessoas que não são muito rápidas ou muito ativas de “plantas”. Porém, quem tem plantinhas em casa sabe que, na verdade, vemos muitas respostas (às vezes até bem rápidas) desses seres vivos à diferença de luminosidade, nutrientes no solo, contato com outras plantas e até nosso amor (brincadeira haha).

Pois é, existe uma visão bastante antropocêntrica ou até zoocêntrica de que inteligência (ou cognição) é uma capacidade presente apenas em seres vivos com sistema nervoso ⎯ isso inclui humanos e quase todos os animais. Isso porque o processamento das informações do ambiente coletadas através da percepção precisaria passar por um cérebro, ou pelo menos um sistema nervoso básico, que criaria um sentido, uma representação do mundo com o qual o organismo pode interagir.

Novas propostas para a cognição entendem que ela acontece em todo o corpo do organismo e muitas vezes de forma direta com o ambiente. Isso significa que muitas capacidades cognitivas não exigiriam o processamento de um cérebro que daria sentido a informação, mas aconteceriam na relação direta do organismo como um todo com seu ambiente. Importante pontuar que estou resumindo essas propostas de forma bem simples aqui.

Esse é um papo super filosófico e bem espinhoso, mas a questão é que essa segunda perspectiva sobre a cognição acaba abrindo possibilidades para organismos bem inesperados serem considerados inteligentes ou cognitivos. Um exemplo são as plantas. Os comportamentos desses organismos foram constantemente considerados fixos, inflexíveis, sempre como resposta a situações do aqui e agora. Porém, nas últimas décadas, pesquisas vêm descobrindo que o repertório comportamental de plantas contêm muito mais do que reflexos instintivos e imutáveis. Estudos vêm descrevendo comportamentos que os autores identificam como capacidades cognitivas a exemplo de mecanismos de tomada de decisão, aprendizado e memória. 

Ervilheira (Pisum sativum) Fonte: Jun Seita

As raízes das plantas são extremamente sensíveis a condições ambientais como disponibilidade de água, nutrientes e gravidade e são essenciais no processo de tomada de decisão de uma planta. Em uma série de experimentos feitos em ervilheiras (Pisum sativum), pesquisadores encontraram que o crescimento de raízes variava em relação à variação temporal de nutrientes no solo. Parte das raízes de uma mesma planta foram colocadas em um solo com concentração de nutrientes constante; uma outra parte foi colocada em um solo com concentração variável de nutrientes. Em vez de considerar apenas a quantidade absoluta de nutrientes no solo, como esperaríamos de um ser com respostas instintivas ou fixadas, as plantas decidiram investir no crescimento das raízes do meio em que a taxa de nutriente média era maior. Isso levou cientistas a afirmarem que os mesmos modelos usados em animais para explicar tomada de decisão e comportamento ótimo poderiam ser utilizados também em plantas.

Não-me-toque / dormideira (Mimosa pudica) Fonte: Krishnendu Pramanick

A habituação é um dos comportamentos de aprendizagem mais antigos estudados em plantas e também faz parte das capacidades cognitivas descritas em humanos e outros animais. Em 2014, Monica Gagliano e colegas da Universidade do Oeste da Austrália e da Universidade de Firenze na Itália, testaram as capacidades de aprendizagem de uma plantinha chamada dormideira ou não-me-toque (Mimosa pudica). Seu nome vem da maneira como suas folhas se fecham em resposta a uma ameaça (vemos isso quando tocamos nela). Quando eles derrubaram as dormideiras de uma altura (algo que a planta normalmente não teria encontrado em sua história evolutiva), as plantas aprenderam, depois de algumas tentativas, que isso era inofensivo e que não precisavam dobrar suas folhas. Surpreendentemente, os pesquisadores observaram que essa habituação pode ser mantida por até 28 dias! Outro experimento incrível de aprendizagem – não de habituação, mas de associação – é descrito pela @herbaweb nesse outro artigo aqui do blog.

Malva (Lavatera cretica) Fonte: Luis Nunes Alberto

Finalmente, chegamos em um exemplo de memória. As plantas chamadas malvas (Lavatera cretica), horas antes do amanhecer, orientam suas folhas para a direção do nascer do sol. Elas parecem se lembrar de onde e quando o Sol nasceu nos dias anteriores e se certificam que vão obter o máximo de energia luminosa possível todas as manhãs. Alguns experimentos foram realizados com essas plantas, trocando a localização da fonte de luz, mas parece que as plantas simplesmente conseguem aprender e lembrar da nova orientação. Quando criamos memórias, possivelmente retemos algumas informações para uso posterior offline. A capacidade de acessar as informações sobre algo que não está presente naquele momento, afirma o filósofo Francisco Calvo, é a razão pela qual a memória é considerada a marca da cognição. A menos que possa operar offline, um estado ou mecanismo não é genuinamente cognitivo.

Pois é, minha gente, ainda há muito o que se estudar sobre a cognição ou inteligência nas nossas plantinhas, mas os exemplos que trouxe aqui com certeza mudam nossa perspectiva sobre elas. Ainda há muita resistência, mesmo dentro da comunidade científica, de que esses exemplos realmente se referem a casos de cognição. Isso pode ser resultado de um fenômeno chamado “plant blindness” (que eu traduziria como cegueira vegetal) – uma tendência a ignorar as capacidades das plantas, o seu comportamento e os papéis ambientais únicos e ativos que desempenham. Esse fenômeno faz com que as tratemos como parte do pano de fundo, e não como agentes ativos em um ecossistema.

Claro, é um esforço imaginativo tentar entender o que o pensamento pode significar para esses organismos, na falta da divisão cérebro (mente) e corpo (motor), que estamos acostumados a lidar. No entanto, ao tentarmos, podemos acabar expandindo esses conceitos e entendendo melhor como as capacidades cognitivas dos animais humanos e não-humanos evoluíram, o que pode ser extremamente benéfico. 

Espero que depois de ler esse texto você pare um momento para olhar para suas plantinhas com novos olhos. E claro, reconsiderar chamar alguém de planta ou vegetal pejorativamente, já que agora você sabe das possíveis extraordinárias capacidades cognitivas das plantas.

Referências

Calvo Garzón, F. (2007). The quest for cognition in plant neurobiology. Plant signaling & behavior, 2(4), 208-211.

Gagliano, M., Renton, M., Depczynski, M., & Mancuso, S. (2014). Experience teaches plants to learn faster and forget slower in environments where it matters. Oecologia, 175(1), 63-72.Segundo-Ortin, M., & Calvo, P. (2019). Are plants cognitive? A reply to Adams. Studies in History and Philosophy of Science Part A, 73, 64-71.