Performatividades de género na democracia ameaçada é o tema do VII Congresso Internacional em Estudos Culturais organizado pelo Grupo de Género e Performance da Universidade de Aveiro, que se realiza nos dias 21, 22 e 23 de Outubro de 2020 [1]. Este tema não poderia ser mais pertinente e atual, considerando que a velha crença que o mundo iria, democraticamente, viver em paz e atingir a igualdade após o fim da guerra fria caiu por terra nos últimos anos, como o comprovam o relatório de Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit referente a 2019, que obteve a pontuação média global mais baixa desde 2006, ano em que a empresa produziu este relatório pela primeira vez [2], e o relatório “Democracy in Retreat”, da Freedom House, Freedom in the World, também de 2019, que como o próprio título indica, mostra que existe um grande retrocesso em países dos vários cantos do globo, inclusive em democracias de longa data como os Estados Unidos [3]. Para nos esclarecer melhor sobre a relevância do tema, conversamos com a Professora Maria Manuel Baptista [4] e com o Alexandre Almeida [5], respetivamente Presidente da Comissão Organizadora e Coordenador do Secretariado Executivo do VII Congresso Internacional em Estudos Culturais.
Helena Ferreira (HF): Professora Maria Manuel, é inevitável que comece por lhe perguntar: porque é que escolheram este tema para o Congresso?
Professora Maria Manuel (Prof. MM): Só a liberdade, defendida pelos sistemas democráticos, por muito imperfeita que seja ainda, pode ser o campo a partir do qual todos os seres humanos se podem realizar e expressar de forma mais plena, tolerante e feliz em todas as suas dimensões. Um ataque à democracia arrasta consigo um ataque à pluralidade e à liberdade das diferentes expressões de género, de corpos diferentes, de formas diferentes de viver e expressar a sua sexualidade. Por isso escolhemos esta temática como central para o nosso VII Congresso Internacional em Estudos Culturais.
HF: Brincando um pouco com o título do seu texto de apresentação do congresso [6], permita-me que lhe pergunte: “Quem tem medo da ‘ideologia de género’?”
Prof. MM: Aqueles que vivem ansiosamente as possibilidades abertas pelas diversas performatividades de género, compreendendo, pelo lado do avesso, o quanto os corpos na sua liberdade criativa e expressiva podem desafiar processos de naturalização política e cultural cada vez mais fragilizados no que ao género diz respeito. O medo de uma tal liberdade e criatividade corporal, sexual e política sinaliza fantasmas vários na nossa cultura, que encontram respostas menos ansiogénicas em discursos e práticas moralmente conservadoras, que se articulam com um quadro de valores neoliberais do capitalismo avançado, em algumas zonas do globo levadas até ao mais recôndito de cada um de nós através de um discurso religioso hiperconservador e alienante, quando não através do arregimentar das consciências por parte de organizações políticas e partidárias fascistas.
HF: Segundo percebi neste seu texto, os grupos antigénero são, per si, uma enorme ameaça à democracia. Pode aprofundar, por favor?
Prof.MM: Os grupos antigénero, em doses diferentes e com expressões e estratégias comunicativas contextualmente diferentes, têm articulado (e sido articulados por) estas duas dimensões: a religiosa e a política, no que elas têm de pior, pois que estamos a falar de práticas fascistas, quer elas se declinem em populismos autoritários ou em fanatismos religiosos. A maior parte das vezes tudo isto está perigosamente amalgamado, resultando que grupos politicamente fascistas, religiosamente fanáticos, se tornam violentamente antigénero. E é por isso que estes grupos antigénero, hoje internacionalmente organizados e poderosamente financiados, com uma política de comunicação muito bem orquestrada, com uma imagem até ‘jovem’ e ‘cool’, são efetivamente uma ameaça aos regimes políticos democráticos.
HF: Alexandre, calculo que os conferencistas foram convidados de acordo com os tópicos temáticos que pretendem abordar no Congresso. Pode falar um pouco sobre estas escolhas, por favor?
Alexandre Almeida (AA): Compor as mesas temáticas talvez seja um dos nossos maiores desafios. Partimos da Universidade, mas nosso grupo tem como política valorizar e respeitar todas as formas de produção de conhecimento, o conhecimento académico é apenas mais um, e precisamos destacar isso em nosso programa. Também temos um forte compromisso com a multiplicidade de vozes. Buscamos ativamente indivíduos diversos. Em nossas mesas teremos conferencistas da América do Sul e da África, para além dos já tão presentes Europeus.
HF: E, relativamente ao programa, pode adiantar alguma coisa? É curioso pensar, por exemplo, que as sessões juntam investigadores, ativistas e artistas apresentando trabalhos e performances sobre um mesmo tema e debatendo as diferentes perspetivas de abordagem. O que pretendem com isso?
AA: Temos divulgado semanalmente em nosso site e Facebook [7] novos conferencistas convidados. Ainda temos alguns nomes por anunciar, além do programa de workshops, da apresentação de investigações, mostra de arte e as performances. Até fim de julho já devemos ter um pré-programa desenhado e divulgado. Os autores que responderam nossa chamada de trabalho enviaram propostas de textos e de performance, e não planejamos apresentá-los em momentos separados. Queremos todos os que pensam o género com esse forte cruzamento político compartilhem sessões e experiências a partir de diversas vivências e pontos de vista. Pretendemos com isso estimular a construção de pontes entre esses grupos. Afinal estamos todos caminhando em direções similares, apenas com ferramentas distintas.
HF: Por último, terei que lhe perguntar: nas atuais circunstâncias, com a pandemia da Covid-19 ainda em curso e sem se saber como poderá evoluir, é previsível que o evento seja afetado. Já possuem um plano B ou, até, um plano C?
AA: Estamos na sétima edição de nosso congresso, já temos bastante experiência acumulada para organização de eventos desta natureza, mas nada nos preparou para a atual situação. As incertezas quanto a evolução do Covid-19 em Portugal e no mundo nos obrigou a pensar mudanças no nosso modo de fazer. Consideramos alguns cenários possíveis e calculamos como melhor atitude manter nossas datas, mas flexibilizar nossos prazos e formato. Após alguma investigação quanto ao que outros equipas organizadoras de eventos científico têm feito, tentamos desenhar um formato que faça sentido em nosso contexto e garanta um debate aprofundado da temática proposta. O que temos planejado no momento é a combinação de participações online e presenciais. Nossa proposta para os autores e participantes será focar nas trocas e no debate mais do que na simples apresentação de slides. Queremos integrar o melhor possíveis todos os participantes, evitando criar divisões entre a experiência presencial e online. Temos reavaliado a situação em reuniões semanais e estamos prontos a repensar sempre. Para nós o mais importante é garantir que esse tema tão importante seja debatido com a qualidade e a profundidade necessárias.
[1] https://viicongresso.estudosculturais.com/
[2] https://www.eiu.com/topic/democracy-index
[3]https://freedomhouse.org/sites/default/files/Feb2019_FH_FITW_2019_Report_ForWeb-compressed.pdf
[4] http://mariamanuelbaptista.com/index.html
[5] https://www.ua.pt/cllc/page/23968
[6] https://viicongresso.estudosculturais.com/apresentacao/
[7] https://www.facebook.com/riecult/