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Arquivos e História da África

Hoje, dia 9 de junho, é o Dia Internacional dos Arquivos. Essa data foi escolhida, porque, há 72 anos, foi criado o ICA (International Council on Archives), sob os auspícios da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). O ICA tem como objetivo “promover a preservação e o uso dos arquivos ao redor do mundo”. Ele também é responsável por diversas iniciativas que vão desde o treinamento de arquivistas ao redor do mundo até a publicação de guias e manuais de terminologia arquivística, como, por exemplo, a base de dados Multilingual Archival Terminology. Nesta semana, diversos eventos online sobre temas relacionados à preservação e importância dos arquivos serão transmitidos pelo site da instituição. Essa é, portanto, uma ótima oportunidade para refletir sobre o potencial de arquivos situados fora dos “grandes” centros acadêmicos e sobre a preservação adequada dessas coleções.

Há muito, a comunidade acadêmica vem levantando a questão da negligência e da falta de recursos disponíveis aos arquivos. O Brasil mesmo viveu a tragédia do incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 2018. A coleção do Museu era vastíssima: o trono do Rei do Daomé, acervos linguísticos, o fóssil humano mais antigo do Brasil, dentre inúmeros outros objetos de valor científico inestimável. Grande parte do acervo se perdeu no incêndio.

43537246085_56101db67e_cFoto: Tânia Rego/Agência Brasil

Mais recentemente, a comunidade acadêmica presenciou outra destruição trágica. No dia 13 de maio deste ano, a cidade de Kayes, no Mali, foi tomada por manifestações decorrentes das tensões políticas que já perduram há muitos anos no país e foram agravadas pela crise da Covid-19. Essas manifestações foram deflagradas pela morte de três jovens, sendo um deles assassinado por um policial na madrugada de 11 para 12 de maio. Durante as manifestações, o prédio da prefeitura foi incendiado. Nesse incêndio, foi também afetado o arquivo do Cercle de Kayes, uma das coleções documentais mais ricas do país. Organizada e inventariada em 2008 e 2009, a coleção foi totalmente destruída pelo incêndio. Agora, pesquisadores e arquivistas tentam chamar a atenção do governo e da comunidade internacional para evitar que outras coleções igualmente importantes sejam destruídas ou deterioradas.

au-mali-la-mort-de-trois-jeunes-embrase-la-population-de-kayes-et-ses-precieuses-archivesArquivo do Cercle de Kayes após o incêndio. Foto: Mamadou Cissé

Assim como o arquivo do Cercle de Kayes, existem inúmeros outros na África que guardam documentação primordial para o estudo da história do continente. Ainda que muita dessa documentação tenha sido produzida pela burocracia colonial europeia, análises “a contrapelo” podem evidenciar tanto os mecanismos de resistência das populações colonizadas, como os mais variados aspectos da vida cotidiana desses grupos. Pegando o exemplo do Mali, é bastante extensa a produção historiográfica que, utilizando documentação dos tribunais coloniais, deu novos contornos à história social da região. O já clássico livro de Richard Roberts, Litigants and Households, por exemplo, analisa o uso dos tribunais coloniais pelas populações colonizadas, em especial as mulheres, que viam nessas instituições uma arena onde poderiam avançar demandas por direitos e reconhecimento. Também Emily Burrill deu especial atenção às mulheres, em suas pesquisas sobre a região. Tendo como foco principal as disputas em torno de divórcios e violência doméstica, a historiadora mostra como as autoridades coloniais cederam à resistência patriarcal ao avanço institucional das demandas das mulheres.

Por todo o continente, estão espalhados arquivos tão importantes quanto os malianos, que nos permitem reescrever a história das populações colonizadas. A Guiné-Bissau, por exemplo, possui uma coleção riquíssima, parcialmente digitalizada e disponível gratuitamente. No site “Casa Comum”, da Fundação Mário Soares, estão disponíveis vários documentos sobre o período colonial e as lutas de libertação. No fundo INEP-Bissau, os pesquisadores podem encontrar documentação administrativa e judicial, produzida pelas autoridades coloniais, que permitem escrever a história social dos trabalhadores guineenses, bem como da repressão política e policial que eles sofreram. Além de todos esses documentos online, o Arquivo, sob a guarda do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa), na cidade de Bissau, possui uma coleção ainda mais extensa, que permitiria o desenvolvimento de pesquisas sobre colonialismo, trabalho forçado, relações de família, polícia e controle social, organização administrativa do Estado colonial, etc.

Vale lembrar, também, o Arquivo Nacional de Cabo Verde. Com documentação que remonta ao século XVIII, os principais fundos do acervo são “Secretaria Geral de Governo”, “Tribunal da Praia” e “Tribunal da Ribeira Grande”. Composto por processos judiciais, inventários, censos populacionais, correspondências e documentação administrativa colonial, esse acervo permite pesquisas sobre relações familiares, escravidão e trabalho compulsório, terras e questão agrária, polícia e controle social, estrutura administrativa colonial, dentre outros. A documentação do Arquivo possibilita, inclusive, pesquisas sobre as mais diversas epidemias que assolaram o arquipélago cabo-verdiano ao longo dos séculos, como indica o historiador José Évora.

Também Moçambique possui acervos documentais valiosos. A pesquisadora brasileira Fernanda Thomaz utilizou muitos deles em sua tese de doutorado. No Arquivo Histórico de Moçambique, ela analisou, principalmente, a documentação do fundo “Juízo de Direito da Comarca de Cabo Delgado” e processos criminais do Tribunal Privativo dos Indígenas do fundo “Porto Amélia”. Na linha dos trabalhos de história social da justiça, a historiadora mostrou as inúmeras tensões e contradições que perpassaram os tribunais coloniais, possibilitando uma redefinição dos conflitos e das relações sociais. A pesquisa de Thomaz, porém, não se restringiu à documentação arquivística. A análise dessas fontes foi cotejada com entrevistas com pessoas da região, o que foi fundamental para evidenciar novos aspectos da documentação escrita.

A lista de exemplos de acervos no continente africano e de pesquisas feitas com essa documentação é muito extensa. O propósito deste post foi aproveitar o Dia Internacional dos Arquivos para trazer alguns desses exemplos. É importante frisar que a história da África só é possível a partir da consulta a essa documentação local. Os arquivos que, hoje, estão nos países das antigas metrópoles não são suficientes para elucidar aspectos fundamentais da vida cotidiana e das práticas de resistência das populações colonizadas. Assim, é necessário o engajamento cada vez maior na preservação e valorização dessas coleções.

Referências bibliográficas

BURRIL, Emily. “Disputing Wife Abuse: Tribunal Narratives of the Corporal Punishment of Wives in Colonial Sikasso, 1930s“. Cahiers d’Études Africaines, v. 47, cahier 187/188, 2007, pp. 603-622.

ROBERTS, Richard. Litigants and Households: African Disputes and Colonial Courts in the French Soudan, 1895-1912. Portsmouth: Heinemann, 2005.

THOMAZ, Fernanda do Nascimento. Casaco que se despe pelas costas: a formação da justiça colonial e a (re)ação dos africanos no norte de Moçambique, 1894 – c. 1940. Tese de doutorado. Universidade Federal Fluminense, 2012.