Na academia acredita-se que a diversidade acelera o desenvolvimento científico. Isso porque, por mais que um dos pilares da ciência seja objetividade, cientistas são humanos e, portanto, é de se esperar que as experiências de vida e pontos de vista (subjetivo) tenham poder de influenciar quais serão as questões que despertarão curiosidade. Além disso, as experiências de vida e pontos de vista também direcionam como as questões científicas serão respondidas.
Ainda não estamos no mundo perfeito e uma longa estrada a caminho da igualdade ainda deve ser percorrida, mas, nós mulheres estamos conquistando nosso espaço e aumentando nossa representatividade no ambiente acadêmico (e em tantos outros espaços).
Portanto, não é de se espantar que a comunidade científica venha manifestando interesse por objetos de estudo que sempre estiveram ao redor, mas não eram o enfoque de estudos, como por exemplo o corpo feminino. Contudo, para além de novas perguntas, a inserção da mulher na sociedade também permite releituras de hipóteses até então bem aceitas.
Aqui vamos falar de apenas três exemplos de releituras de hipóteses: Sheela-na-gigs, Pinturas rupestres e Vikings.
Sheela-na-gigs

Imagem e autorização: Commons-wikimídia
Sheela-na-gigs são esculturas femininas encontradas na Espanha, Inglaterra e Irlanda, datando do século 11 no primeiro país e 12 nos dois últimos que possuem uma vulva larga que está sendo aberta pelas mãos da própria dona da vulva. Os primeiros relatos sobre elas datam do século 19, e as descreviam como grotescas, feias e aterrorizantes.
A visão moderna do falogocêntrico apresenta diversas explicações possíveis, mas que recaem sobre duas grandes vertentes: ou são representações de fertilidade e maternidade, ou de perigo e aviso. Entre as hipóteses encontram se: 1) estas esculturas poderiam ser feitas e dispostas para lembrar a população do “olho que tudo vê” sendo uma forma de ameaça e controle comportamental da população; 2) relacionam a exposição do útero como um retorno a casa; 3) representações do cotidiano tendo relação com o parto; 4) uma entidade sobre o engano, sobre o poder de atração para algo perigoso e sombrio: “a vagina dentata”, sendo um aviso contra a luxúria sexual.
Contudo, Margaret Murray, uma antropóloga, anglo-indiana, arqueóloga, historiadora, folclorista, egiptologista e mulher (1863-1963) tinha outra interpretação. Ela dizia que as sheela-na-gigs celebravam o amor lesbiano e o autoconhecimento através da masturbação e assim, representam de forma positiva a sexualidade feminina.
Veja, uma mulher traz para o mundo da ciência uma forma alternativa de ver a imagem da mulher e da sua sexualidade, desvinculando a mulher de ambos os papéis usualmente empregados para elas: de reprodução unicamente (sem poder, escolha, independência e prazer) ou de internúncio do mal.
Recentemente Rachel Shanahan, também rebate as comuns interpretações, na sua tese de doutorado. Rachel defende que se as sheela-na-gigs fossem representações pagãs sobre fertilidade, esperaria-se que, como encontrada em outras representações de fertilidade e maternidade, tivesse grandes bustos, e formato mais arredondado do corpo. Contudo, as sheela-na-gigs são magras e sem peitos. Ela também questiona a interpretação de que estas esculturas seriam mensageiras de conduta comportamental, ao discutir que são encontradas em castelos, e que espera-se que imagens de aprendizado e conduta fossem dispostas em igrejas.
Ela também argumenta que as sheela-na-gigs nos trazem uma pequena noção de como a sexualidade da mulher era tratada (e eu incluo “como ainda é”) por algumas culturas: ora interpretada como sorte – por uma sociedade que lhe concedia poder e controle sobre os seres; ora interpretada como praga – por uma sociedade que condena os desejos femininos e amaldiçoava quem ousasse saciá-los. Seja como for, a sexualidade feminina jamais foi interpretada como natural, sendo necessário, sempre, justificar sua existência e suas implicações, boas ou ruins.
Pinturas Rupestres
Pinturas rupestres são desenhos feitos por nossos ancestrais que ainda hoje se encontram preservados. Tradicionalmente acredita-se que os homens foram os responsáveis por estes desenhos. Mas qual evidência sugeriria que estas pinturas fossem realmente feitas por machos?
Uma pesquisa recente mostra que ao contrário do imaginado até o momento, mulheres também são responsáveis por pinturas rupestres. Na realidade, são responsáveis pela maioria de uma categoria específica que são impressões das próprias mãos. Este relato abre portas para o debate da importância das mulheres nas demais formas de pinturas rupestres feitas por nossos ancestrais.

Santa Cruz – Cueva de las Manos – Perito Moreno, Argentina, fonte e permissão: Creative Commons
Dean Snow, da universidade da Pensilvânia, analisou as impressões de mãos existentes em 8 cavernas da França e da Espanha e ao comparar o comprimento dos dedos, determinou que 75% das amostras pertencem a mulheres. Mulheres tendem a ter o comprimento dos dedos indicador e anelar parecido entre si enquanto homens possuem o anelar maior que o indicador.
Porque essas mulheres estariam deixando as marcas das mãos delas nas cavernas? Seriam as responsáveis por outros desenhos também? Seriam elas as xamãs do grupo? Seriam representações da subjetividade? Estariam as artes relacionadas ao sexo? Ou talvez a hierarquia ou papel social dentro do grupo? Muito ainda falta ser respondido, mas é essencial entender a importância da inserção das mulheres no mercado, na sociedade como parte ativa desta, porque até hoje a única hipótese alternativa à supremacia masculina foi proposta por Dale Guthrie. Dale argumentava que os desenhos eram feitos por meninos, isso meninOs. A mulher estar presente, não apenas permite que ela traga o seu ponto de vista à ciência, mas que traga visibilidade para o papel social de todas, catalisando inclusive que os próprios homens cientistas possam também começam a enxergar hipóteses alternativas que envolvam mulheres.
Vikings e vikingxs
Em 1880, foi descoberto um túmulo viking. Junto dos restos mortais humanos também foram encontrados: machado, lança, espada, arco, flechas pesadas e jogos de estratégia. Além disso, também foi encontrada ossadas de animais como cavalos, égua, garanhão. Estas peças indicavam que a pessoa enterrada ali era um guerreiro, de alto escalão e um estrategista, o que significa alguém responsável por decisões de guerra. Em 1880 parecia muito óbvio que apenas um homem poderia ter tido esse papel social. Ou seja, para determinação do papel social do indivíduo foram usadas evidências, já para a determinação do sexo, experiência de vida, ponto de vista. Em 1970, quando já havia tecnologia suficiente para reconhecer se estes restos mortais pertenciam a um homem ou a uma mulher, contudo, ainda parecia muito óbvio que estes restos mortais só poderiam pertencem a um homem. Então, mesmo com a tecnologia em mão, nenhum pesquisador foi atrás de evidências e aqueles restos mortais continuaram sendo ligados ao sexo masculino.
Em 2017, Charlotte Hedenstierna-Jonson e sua equipe questionaram, depois de mais de cem anos, que o sexo daquela ossada não era tão óbvio assim e analisaram o DNA dos restos mortais. Para grande surpresa na comunidade, os restos mortais pertencem ao sexo feminino. Uma mulher, viking, guerreira, estrategista. Uma mulher.
E então?
Estes trabalhos tem uma grande importância, porque ressaltam o quanto conclusões científicas podem ter grande influência da cultura na qual o cientista encontra-se inserido. Por muito tempo, a academia foi composta por homens brancos ocidentais de classe média-alta. Cultura é o que define os papéis de gênero, e a cultura da qual fazemos parte, o faz de forma bastante restrita.
Podemos dizer que as interpretações científicas, como as mostradas aqui tem uma grande influência das construções sociais. Portanto, diversidade sim, é importante na ciência porque ao assumir e justificar o comportamento a ciência pode perigosamente reforçar estereótipos.
A ciência está inserida na sociedade e é, portanto, contextualizado em um cenário político-histórico. Aceitar este fato não desclassifica a ciência, mas empodera a sociedade.
PARA SABER MAIS
Link para mapas de mapas de localidade das Shellas-na-gigs: http://www.sheelanagig.org/wordpress/map/
Shanahan R.L. Grotesque Sheela-na-gigs? A feminist reclaiming of borders in “The spirit of woman” Dissertação de mestrado na Universidade de Colorado en Denver. 2015.
https://www.researchgate.net/publication/273042625_Sexual_Dimorphism_in_European_Upper_Paleolithic_Cave_Art