Ainda é bastante comum notar um desconforto quando se fala de cultura entre animais. Um tanto porque nos vemos como excepcionais e assim procuramos por uma característica que seja única ao ser humano. Oras, algo exclusivo remonta a ideia de superioridade, mas a princípio, todas as espécies apresentam ao menos uma característica que lhe é exclusiva, e por isso é classificada como uma espécie diferente das demais.
Mas seria a cultura a característica exclusiva dos humanos?
Cultura é um termo bastante amplo, e por mais que certas complexidades da cultura possam ser exclusivas ao ser humano, não poderíamos dizer que a cultura seja exclusiva aos humanos. Mesmo que não houvesse nenhum estudo mostrando a existência de cultura em animais, é de se esperar que haja no mundo animal cultura em diversas formas de complexidade. Isso porque na biologia dificilmente temos o desenvolvimento de algo complexo sem termos espécies próximas filogeneticamente que apresentem formas mais simples da mesma. Por exemplo, o cérebro. Quando você leu cérebro você provavelmente se lembrou do seu órgão que permite que leia esse texto, mas você sabe que por mais que o seu cérebro seja bastante complexo é um órgão existente em diversos animais. E a cultura? Se você tivesse que formular uma hipótese, diria que é provável que outras espécies possuem cultura, mesmo que não apresente as mesmas especificidades da cultura humana?
Então, não é de se espantar que haja diversas espécies que possuem cultura.
Mas afinal o que é cultura?
Cultura no dicionário online Michaelis é definido como “ato de semear ou plantar vegetais”, ou ainda “a área cultivada de um sítio”, mas é também definido com “conjunto de conhecimentos, costumes, crenças, padrões de comportamento, adquiridos e transmitidos socialmente, que caracterizam um grupo social” ou ainda “requinte de hábitos e conduta, bem como apreciação crítica apurada”. Como você pode ver a palavra pode significar muitas coisas tendo relação com seu contexto sócio-cultural.
Para falarmos de cultura em animais vamos usar a seguinte definição usada por Brakes e colaboradores 2019, em um artigo publicado na Science, sobre o papel da cultura na conservação:
Um infante de macaco-prego nas costas da mãe enquanto ela utiliza ferramenta para comer um coco. Foto by Mari Fogaça
“informação ou comportamento compartilhado dentro de uma comunidade – que é adquirida de conspecíficos através de alguma forma de aprendizagem social”.
Nesse artigo os autores discutem como cultura, tradições e suas formas de transmissão podem ser necessárias para fazer planos eficientes de conservação e sugerem é que cultura, pode, portanto, explicar porque alguns programas de conservação são bem sucedidos (por exemplo, facilitando a resiliência da diversidade cultural) enquanto outros falham (por exemplo, negligenciando repositórios chave do conhecimento socialmente transmitido).
E defendem que resultados positivos da conservação podem depender da restauração do conhecimento cultural. Por exemplo, sabemos que aves, como o grou-americano aprendem com outros indivíduos as rotas migratórias, entender esse processo de aprendizagem, evita que se reintroduza indivíduos que vão fracassar na migração e portanto morrer. Agora levando em consideração a cultura dos grou-americano, projetos de conservação podem delinear métodos alternativos como criação de aeronaves ultraleves para guiar as aves que forem introduzidas, ao longo de sua primeira migração, aumentando potencialmente a eficácia dos programas de reintrodução.
Um outro exemplo, é o caso dos elefantes órfãos que em meados de 1970, foram introduzidos no Parque Nacional Pilanesberg na África do Sul onde cresceram em um grupo sem a presença de machos adultos. Esses órfãos se tornam machos adultos que eram bastante violentos durante o período de acasalamento. Quando em fase de acasalamento os elefantes sofrem mudanças fisiológicas que os incham para parecerem maiores e competir pela fêmea. Adultos nesse período tem controle desse inchaço, modelando os períodos que apresentam o comportamento. Jovens machos elefantes aprendem a modelar com um macho adulto e como sabemos esse grupo não tinha machos adultos e portanto, como aprender. Assim, os machos adultos apresentaram o comportamento de acasalamento de forma exacerbada e chegaram a matar 50 rinocerontes. Para resolver essa questão a gestão do parque introduziu 6 machos adultos do Parque Nacional Kruger – que haviam tido contato com machos adultos durante seu desenvolvimento, em apenas algumas horas os jovens aprenderam como lidar com suas mudanças hormonais. Esse é um exemplo clássico de como a cultura pode influenciar os projetos de conservação.
Mãe orangotango e seu filhote mamando. Foto: @khamkhor via unsplash
A alimentação é evidentemente importante na sobrevivência e pode estar relacionada a cultura e aprendizagem. Muitos animais aprendem o que podem comer, como comer e onde procurar por alimentos e portanto, não adianta re-introduzir um animal que só viveu em cativeiro em um ambiente sem levar em consideração a cultura. Orangotangos, por exemplo, aprendem com suas mães técnicas de forrageamento, de localização de alimentos e como lidar com sazonalidade dos alimentos. Sem essa informação planos de manejo podem fracassar.
Mas infelizmente, estratégias e políticas de conservação têm se concentrado principalmente em dados demográficos dos animais e assim focado na preservação de unidades geneticamente definidas, em outras palavras protegem a espécie e não um grupo social. A princípio o que pode parecer fazer sentido afinal, ao se proteger a espécie protege-se automaticamente a cultura, não? Além disso cultura pode ser vista como um subproduto: comportamentos que unem o grupo, ou que podem ser usados unicamente para entretenimento, portanto não seria objeto de preocupação para os planos de ações de conservação. Contudo o conjunto de comportamento determinado pela cultura também podem ter consequências importantes para a sobrevivência e reprodução de indivíduos, grupos sociais e, potencialmente, populações inteiras.
O conhecimento sobre cultura, (quais são os comportamentos associados a cultura, como são transmitidos e quais as formas de aprendizagem) também pode ser explorado para amenizar os conflitos entre homem e vida selvagem, por exemplo, usando a habilidade do animal em aprender para treinar comportamentos desejáveis, como evitar determinados alimentos ou áreas.
Os autores concluem que para melhorar a eficácia dos esforços de conservação é fundamental considerar a cultura, integrando a estrutura social e a transmissão de informações sociais.
Para saber mais:
Brakes, et al. 2019. Animal cultures matter for conservation, Science 363 (6431) 1032-1034
van Schaik CP, et al. 2003. Orangutan cultures and the evolution of material culture. Science 299:102–5
Mueller et al. 2013 Social Learning of Migratory Performance. Science. 341 (6149) 999-1002