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Quando um estudo é confiável? Os casos do ozônio e da hidroxicloroquina

Com o mundo inteiro passando por uma pandemia que está desafiando a ciência (e os nervos), está sendo possível acompanhar o desenvolvimento de medicamentos e possíveis tratamentos para COVID-19 (Para mais informações sobre alguns tratamentos, você pode ler esses posts aqui no blog: 1, 2, 3, 4) . Como nem todo mundo está acostumado com o andar da ciência, a chuva de notícias mostrando que uma hora tal medicamento é promissor, e na semana seguinte já não é mais, causa muita confusão na cabeça da população que só quer sair da p%%¨&%$&*$¨ do isolamento. Falta de paciência misturada com falta de conhecimento científico e gente mal intencionada acaba gerando um caos.

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Figura 1: O ânimo durante o isolamento social. Fonte: Justin Sullivan / Getty Images North America / AFP

O caso mais recente foi o que aconteceu na cidade de Itajaí (SC), onde o prefeito, que é médico, queria indicar para a população uma terapia com ozônio baseado em alguns estudos e relatos de melhoras de pacientes com COVID-19. O caso mais grave foi o da hidroxicloroquina que foi recomendada não só pelo presidente do Brasil, mas também pelo presidente norte americano, e que não tem eficácia comprovada. A confusão em ambos os casos se deu porque os defensores dessas terapias baseiam a sua opinião em estudos publicados que afirmavam que os tratamentos funcionavam. A questão toda aqui é que nem todo estudo pode ser considerado válido a nível populacional. Existem diferentes tipos de estudos para comprovar a eficácia e segurança de um medicamento e alguns são mais confiáveis que outros. Nesse texto eu vou tentar explicar um pouco quais as características de um estudo que conferem mais ou menos credibilidade.

Nesse texto aqui do blog, a autora apresenta algumas metodologias de pesquisa, conceitos e detalha quais são as classificações dos estudos. Dependendo do que se quer estudar, o desenho do estudo, a quantidade de pacientes incluídos e o tempo de observação vão ser diferentes. Como regra geral, quanto mais pacientes e variáveis avaliadas por um período maior de tempo, melhor o estudo.

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Figura 2: Diferença entre o método científico, no qual o pesquisador observa o fenômeno, formula hipóteses a faz testes que podem ou não confirmar a hipótese inicial, de outros métodos que “produzem” medicamentos, tratamentos ou teorias sem comprovação. Fonte: https://conhecimentocientifico.r7.com/metodo-cientifico/ acesso em 18 de agosto de 2020.

No caso da ozonioterapia, por exemplo, o prefeito de Itajaí citou estudos feitos na Itália e Espanha que comprovaram a eficácia desse tratamento. Um ponto importante é que em nenhuma reportagem ou entrevista ele citou que estudos são esses, então eu fui procurar o que tem publicado. Na maioria dos casos, os artigos trazem informações teóricas de outros estudos e extrapolam os resultados para chegar à conclusão que ozônio seria um possível tratamento para COVID-19. Um desses estudos, publicado na revista Antioxidantes, mostra dados de uma série de outros estudos nos quais o ozônio atuou como protetor celular em diversas condições de estresse. É um tipo de estudo de revisão, que agrupa informações sobre um determinado assunto, permite comparar essas informações de diferentes fontes e avaliar a consistência dos dados. O problema aqui é que ele não mostrou nenhum dado específico de ozônio no tratamento de COVID-19. Nem mesmo em experimentos em laboratório. Nesse caso não é um estudo que podemos nos basear para iniciar tratamento de pacientes. Num outro estudo, pesquisadores utilizam a mesma técnica, mas agora focando mais em uma característica específica. O artigo fala de problemas de microcirculação pulmonar que é característico em diversas outras doenças e faz um gancho dizendo que ozônio, em teoria, aumentaria a oxigenação, concluindo que se COVID-19 causar um problema de falta de circulação sanguínea, e consequentemente falta de oxigênio no pulmão, isso já seria evidência suficiente para usar ozônio para tratamento de COVID-19. A conclusão do artigo é ainda mais chocante:

“The use of the ozone-dilution technique in physiological solution and its infusion could also be evaluated and, in the future, the possibility of using ozone therapy with endonasal  insufflation as a substitute for the vaccine could be evaluated.”

Em tradução livre: “O uso da técnica de diluição de ozônio em solução fisiológica e sua infusão poderia ser avaliada e, no futuro, a possibilidade de uso da ozonioterapia por insuflação endonasal como um substituto da vacina poderia ser avaliado”.

Não só o artigo não traz dados clínicos e experimentais específicos de COVID-19, como ainda sugere que a terapia pode ser usada ao invés de uma vacina. Outro detalhe importante, o artigo não é revisado por pares, o que significa que os autores o escreveram e publicaram sem ninguém ler e emitir uma opinião a respeito. Para vocês terem uma ideia, todos os textos publicados aqui no blog são revisados por pelo menos duas outras pessoas e discutidos antes de serem finalizados. Isso evita erros, vieses, e falha de comunicação por exemplo. Novamente, aquele é um artigo científico? Tecnicamente sim. Tem algum valor para o conhecimento e prática clínica? Não. E porque não? Porque não traz dados de pacientes com COVID-19, não faz comparação entre pacientes que usam ozônio e os que que não usam ozônio, e absolutamente nenhum dado que nos indique que os pacientes que usam ozônio não tiveram efeito adverso, nem mesmo dados de experimentos em laboratório. Você está disposto a usar algo que nunca foi testado antes e além de não ter comprovação de eficácia, não se sabe se é seguro?

Existem registros de pelo menos dois estudos clínicos sendo feitos na China para avaliar o uso da ozonioterapia no tratamento de COVID-19. Pelo menos um deles é randomizado, ou seja, os pacientes são escolhidos aleatoriamente, o que é uma vantagem porque representa melhor a população. Ainda assim, esse estudo em andamento conta com somente 152 participantes. Quando os resultados saírem, podemos ter uma ideia melhor de como o ozônio afeta os pacientes com COVID-19.

A questão da hidroxicloroquina segue a mesma linha de raciocínio. É verdade que alguns estudos publicados mostraram resultados diretamente em pacientes tratados em hospitais, o que já é uma vantagem em relação à ozonioterapia, mas as notícias boas acabam por aí. Um dos estudos que trouxe a hidroxicloroquina para as notícias foi conduzido na França avaliando 20 pacientes infectados com COVID-19. O problema deste estudo é que 20 pacientes não representam a população. Ele é válido no sentido de despertar uma possibilidade de tratamento que precisa ser mais investigada e ponto. Não se pode dizer que porque 20 pessoas tiveram uma melhora por conta de um tratamento, aquele tratamento pode ser feito em todo mundo. Muito menos comprar estoques e estoques de um medicamento e indicar que a população se automedique porque 20 pessoas tiveram uma melhora. Quem são essas 20 pessoas? elas tinham algum problema pré-existente? eram homens? mulheres? quais eram suas idades? Um detalhe importante desse artigo é que do grupo de pacientes que iniciaram tratamento com a hidroxicloroquina, 6 morreram antes de terminar o tratamento. Nenhum paciente do grupo controle morreu. Os autores não levaram em consideração essas mortes durante a análise dos resultados, então quando eles concluem que 100% dos pacientes tratados com hidroxicloroquina e azitromicina testaram negativo para o vírus depois do tratamento, eles estão considerando somente os pacientes que terminaram o tratamento vivos. Não te parece errado não considerar e não avaliar o porquê outros pacientes morreram durante o tratamento? Já temos outros estudos maiores e com resultados confiantes mostrando que a hidroxicloroquina não oferece nenhuma vantagem no tratamento de COVID-19.

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Figura 3: Ás vezes muita informação e dados divergentes podem fazer a gente ficar confuso. Fonte: Arquivo pessoal.

Eu entendo que nem todo mundo lê e entende um artigo científico. Fica confuso e difícil avaliar em quem confiar quando muitos jargões são usados e a comunicação não é eficaz. Na situação atual, tudo que queremos é uma cura, deixar de ter medo, rever amigos e familiares e voltar a nossa rotina, mas não existe milagre. Desconfie de tudo que for muito bom pra ser verdade. Desconfie da pílula mágica ou super alimento que cura desde unha encravada até câncer. Procure diversas fontes antes de chegar a uma conclusão. Veja o que grandes organizações, como OMS, Conselhos de Medicina, institutos de pesquisa ou universidades estão falando a respeito. Nessas organizações o consenso não é baseado em uma ou outra opinião, são milhares de pesquisadores, médicos, e profissionais de saúde conversando e avaliando todos os pontos de vista. A evolução da ciência não depende da nossa opinião e não acontece do dia para a noite. É resultado de testes, experimentos, cálculos, interpretação e principalmente trabalho árduo de cientistas. Tudo o que queremos é ter uma cura, uma vacina, uma notícia positiva e estamos nos esforçando para isso, mas queremos ter certeza de que tudo o que fazemos vai ser seguro e certeiro. Como diz minha mãe, não queremos que a emenda saia pior que o soneto.

 

Referências:

Martínez-Sánchez G, Schwartz A, Di Donna V. Potential Cytoprotective Activity of Ozone Therapy in SARS-CoV-2/COVID-19. 2020. Antioxidants, 9: 389. DOI: 10.3390/antiox9050389.

Ranaldi GT, Villani ER, Franza L, Motola G. 2020. Devils and Angels: Ozonetherapy for microcirculation in covid-19. DOI: https://doi.org/10.31226/osf.io/c2jvt.

Gautret P, Lagier, Parola JCP, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, Doudier B, Courjon J, Giordanengo V, Vieira VE, Dupont HT, Honoré S, Colson P, Chabrière E et al. 2020. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents, 56 (1): 105949. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijantimicag.2020.105949.

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Morcegos e Coronavírus Evoluindo Juntos OU Como Prevenir Novas Epidemias?

Após várias teorias de conspiração para o surgimento do SARS-Cov-2, vírus causador da atual pandemia, em março deste ano um grupo de cientistas publicou um estudo com fortíssimas indicações de que o SARS-Cov-2 não teria sido criado em laboratório e sua origem seria uma mutação do coronavírus presente em algumas espécies de morcegos e/ou pangolins. As duas espécies animais são portadoras de tipos de vírus similares ao que está causando a pandemia atualmente. Uma das possíveis origens da teoria de que SARS-Cov-2 teria sido criado em um laboratório em Wuhan (China) pode ter sido pelo longo histórico de laboratórios de pesquisa dessa cidade que estudam a relação entre coronavírus e morcegos. Esse não é um assunto novo, até porque outras espécies de coronavírus já são conhecidas por causar doenças em seres humanos como o coronavírus causador da MERS ou síndrome respiratória do Oriente Médio, mas nenhum deles tinha tido um impacto tão grande como o SARS-Cov-2. Você pode conferir mais sobre isso nesse texto aqui do blog.

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Figura 1: Modo de transmissão do coronavírus para seres humanos pode ser através de uma contaminação direta do hospedeiro ou pode envolver um hospedeiro intermediário como o pangolin no caso do SARS-Cov-2. Modificado de Freepik.

Entender a relação entre duas espécies que evoluem juntas pode nos dar indícios de como prevenir ou combater possíveis novas infecções causadas por qualquer agente que tenha origem animal, como ebola (causado pelo vírus Ebola) ou esquistossomose (causada pelo verme Schistosoma mansoni) por exemplo. É essa relação de evolução conjunta, chamada coevolução, que um grupo de cientistas da França, Estados Unidos, Madagascar, Moçambique, África do Sul, Ilhas Maurício e Seychelles estudaram entre 36 espécies de morcegos e diferentes tipos de coronavírus em uma área do sudeste da África continental (Moçambique) e diversas ilhas a oeste do Oceano Índico. O objetivo dos pesquisadores e pesquisadoras foi, entre outras coisas, avaliar possíveis formas de outros tipos de coronavírus se tornarem transmissíveis a seres humanos.

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Figura 2: Mapa da região onde foram coletados os morcegos analisados em Joffrin et al. (2020). Crédito: Joffrin et al. (2020).

Em primeiro lugar foi avaliada a taxa de morcegos infectados com coronavírus. No total, 8,7% dos 1.036 indivíduos estavam infectados e a maior taxa de infecção foi encontrada em Moçambique, ou seja, no continente. Outras análises indicaram que a grande maioria dos vírus coletados era específica de uma determinada família de morcegos, ou seja, cada “espécie” de vírus é capaz de infectar somente uma família de morcegos (importante ressaltar aqui que família tem sentido taxonômico). Isso já era esperado, tanto que de acordo com o Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus (ICTV em inglês) coronavírus são estruturados filogeneticamente em subgêneros e, em geral, cada subgênero infecta uma família de morcegos. É por isso que a denominação dos subgêneros virais é feita de acordo com a denominação da família de morcegos infectada por estes (Ex.: vírus do subgênero Rhinacovirus infectam morcegos da família Rhinolophidae por exemplo).

Um dos resultados inesperados encontrados pelos pesquisadores foi o modo de evolução viral. A hipótese era de que os vírus que infectam morcegos na área analisada (Ilhas e continente a oeste do Oceano Índico) evoluíram pela transferência de hospedeiro seguida de adaptação, como acontece com coronavírus que infectam morcegos africanos de acordo com um estudo feito por Anthony e colaboradores (2017). Isso significa que uma espécie de vírus que infecta a espécie X de morcego sofre uma mutação e passa a ser capaz de infectar a espécie Y e, após isso, se adapta ao novo hospedeiro até que seja diferente o suficiente para ser identificado como um tipo diferente de vírus. Os vírus encontrados nos morcegos da região oeste do Oceano Índico, por outro lado, evoluem, em sua maioria, por um processo chamado coevolução. Isso significa que mudanças evolutivas em morcegos geram mudanças evolutivas no vírus que infecta aquela espécie de morcego. Essa forma de evolução é comum em relações de parasita-hospedeiro ou em plantas e polinizadores. Houve um caso, entretanto, em que um grupo de cientistas encontrou o mesmo vírus infectando duas famílias de morcegos em uma área de Moçambique.

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Figura 3: Filogenia fictícia que ilustra a ideia de que o coronavírus evolui junto com o seu hospedeiro natural, o morcego. Crédito: Richard Borge para Scientific American.

O artigo termina com uma análise de três outros tipos de coronavírus conhecidos por infectar humanos e morcegos (NL63 Human CoVs, 229E Human CoVs e MERS-like Cov). Ainda não se sabe exatamente como esses vírus começaram a ter capacidade de infectar humanos, mas estima-se que tenha sido através de um hospedeiro intermediário (vírus do morcego infecta outro animal e esse animal transmite a seres humanos). Para encerrar, o grupo de cientistas concluiu que, como em outras zoonoses, o surgimento, mutação e infecção de humanos por novos vírus são associadas a mudanças no ecossistema como fragmentação de habitat, práticas intensivas de agropecuária e consumo de carne de origem selvagem. Essa conclusão vem de acordo com os resultados de outro artigo publicado semana passada (4 de Maio) por um grupo de cientistas do Reino Unido que chama a atenção para como as práticas de manejo animal (pecuária intensiva, com o uso indiscriminado de antibióticos, o grande número de animais e baixa diversidade genética destes animais) são um risco enorme para o surgimento de epidemias. Uma reavaliação da nossa relação e o  impacto que causamos no meio ambiente se faz necessária o mais rápido possível ou pandemias, distanciamento social e todo o sofrimento causado por essas doenças vai se tornar o novo normal.

 Referências: 

Joffrin L, Goodman SM, Wilkinson DA, Ramasindrazana B, Lagadec E, Gomard Y, Le Minter G, Santos A, Schoeman MC, Sookhareea R, Tortosa P, Julienne S, Gudo ES, Mavingui P, Lebarbenchon C. (2020). Bat coronavirus phylogeography in the Western Indian Ocean. Scientific Reports, 10 (1) DOI: 10.1038/s41598-020-63799-7

Coronaviruses and bats have been evolving together for millions of years: Different groups of bats have their own unique strains of coronavirus.” ScienceDaily. ScienceDaily, 23 April 2020. <www.sciencedaily.com/releases/2020/04/200423082231.htm>

Mourkas E, Taylor AJ, Méric G, Bayliss SC, Pascoe B, Mageiros L, Calland JK, Hitchings MD, Ridley A, Vidal A, Forbes KJ, Strachan NJC, Parker CT, Parkhill J, Jolley KA, Cody AJ, Maiden MCJ, Kelly DJ, Sheppard SK. (2020) Agricultural intensification and the evolution of host specialism in the enteric pathogen Campylobacter jejuni. Proceedings of the National Academy of Sciences, 201917168 DOI: 10.1073/pnas.1917168117

Anthony SJ, Johnson CK, Greig DJ, Kramer S, Che X, Wells H, Hicks AL, Joly DO, Wolfe ND, Daszak P, Karesh W, Lipkin WI, Morse SS, PREDICT Consortium, Mazet J, Goldstein T (2017). Global patterns in coronavirus diversity. Virus evolution, 3(1), vex012. https://doi.org/10.1093/ve/vex012

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Vamos falar sobre fogo?

Se você passou o olho em qualquer site de notícias ou rede social nas últimas semanas, certamente você se deparou com algo sobre a grande queimada que continua acontecendo na floresta amazônica. Apesar das diversas “opiniões” sobre quem colocou fogo, quem deve apagar o fogo, etc, uma coisa é unânime: o fogo na floresta não é bom. O que acontece durante e depois do fogo que pode afetar nossas vidas?

 

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Figura 1: Incêndio que acomete a região amazônica. Fonte: Fernando Frazão/ABr

Durante:

Para quem vive perto da floresta os efeitos imediatos são mais pronunciados. De acordo com um estudo publicado em 2002 por pesquisadores da Universidade de São Paulo, os efeitos diretos na saúde da população incluem infecções do sistema respiratório superior, asma, conjuntivite, bronquite, irritação dos olhos e garganta, tosse, falta de ar, nariz entupido, vermelhidão e alergia na pele, e desordens cardiovasculares.

Durante a queima da floresta há também uma grande liberação de gases responsáveis pelo efeito estufa, já que todo o bioma serve como um reservatório retirando da atmosfera esses gases tóxicos. A liberação desses gases tem efeitos no meio ambiente em longo prazo, mas também afeta indivíduos a curto prazo. Estudos nos EUA indicam que uma das grandes causas de envenenamento por monóxido de carbono é devido aos incêndios florestais que acontecem na região (Varon et al., 1999).

Além dos efeitos diretos na saúde, ainda há efeitos sociais e econômicos que afetam toda a população que mora na região como a drástica redução da visibilidade, fechamento de aeroportos e escolas, aumento de acidentes de tráfego, destruição da biota pelo fogo, diminuição da produtividade e restrição das atividades de lazer e de trabalho.

Devido a proporção dos incêndios que estão acontecendo na Amazônia foi possível constatar de maneira clara que estes efeitos imediatos podem acometer não só quem vive próximo a floresta, mas também quem está a muitos quilômetros de distância. Foi o que vimos acontecer quando o dia escureceu em São Paulo.

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Figura 2: São Paulo no dia 19/08/2019 por volta das 16h. Fonte: Correio Brasiliense.

De acordo com meteorologistas, a escuridão se deu por conta do excesso de poluição urbana que foi agravado pelas fumaças trazidas do norte do Brasil e Bolívia por conta da queima da floresta nessas regiões. Pesquisadores da USP também detectaram substâncias na água da chuva de São Paulo que são originadas somente quando há queima de biomassa, ou seja, um incêndio florestal.

Apesar dos efeitos durante as queimadas afetarem uma quantidade significativa de indivíduos, os efeitos mais pronunciados e graves ainda estão por vir.

Depois:

Aqui é importante ressaltar que não importa onde você vive, se perto ou longe da floresta, você será afetado. Incêndios da proporção dos que estão ocorrendo na Amazônia (e pelos mesmos motivos) não são uma exclusividade do Brasil. Infelizmente acontecem em diversas regiões do globo e todos nós temos que dividir a conta.

Para começar, temos que considerar o atual estado climático e como isso afeta a floresta. Um grupo de cientistas de universidades americanas publicou esse ano um artigo revelando um efeito muito preocupante. Por causa das mudanças atmosféricas e de temperatura já causadas pela mudança climática em curso, está ficando cada vez mais difícil para as florestas se recuperarem após queimadas. Ao contrário de alguns biomas como o cerrado, no qual a vegetação possui adaptações para sobreviver e se recuperar após queimadas, a vegetação das florestas não possui proteção contra fogo simplesmente porque o fogo nessas áreas não é um evento natural. Por causa disso, a disponibilidade de sementes viáveis após a ocorrência de um incêndio é muito baixa, diminuindo a possibilidade de recuperação da vegetação. Além disso, mesmo que algumas sementes consigam resistir, o crescimento da vegetação é afetado por condições atmosféricas e climáticas que estão sendo alteradas por conta da crise climática. O resultado disso, de acordo com esse estudo, é uma probabilidade cada vez maior de áreas de florestas que foram incendiadas não consigam retornar ao seu estágio inicial.

Outro estudo realizado por cientistas australianos também traz más notícias: O tempo de regeneração do solo após queimadas é muito maior do que se esperava. Inicialmente se imaginava que o solo poderia se recuperar após um evento de queimada em aproximadamente 10 ou 15 anos. Os cientistas ficaram surpresos ao constatar que esse tempo pode ser de até 80 anos. Por conta da temperatura a que o solo é submetido, a perda de nutrientes é muito severa e a recuperação se torna lenta.

Ambas as consequências de incêndios acabam gerando um ciclo vicioso perverso: uma área é incendiada, libera gases do efeito estufa durante a queima, aumenta os efeitos de mudanças climáticas, não se reconstitui e deixa de absorver gases que aumentam os efeitos de mudanças climáticas, tornando o clima ainda mais severo.

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Figura 3: Efeitos do desmatamento na região amazônica na continuidade da floresta. Fonte: O Globo.

Não se esqueça de somar a esse cálculo as consequências que estamos acostumadas a ouvir: derretimento das geleiras, aumento de poluição e gases do efeito estufa, aumento da temperatura global, aumento do nível dos oceanos, acidificação dos oceanos e por ai vai…Tudo isso é consequência do desflorestamento, entre outros tantos motivos. Esse artigo aqui do blog explica diversos motivos pelos quais devemos manter as florestas intactas e quais as consequências se não preservarmos.

E qual é a solução?

Não existe uma solução, existem várias. Existe o que os governantes podem fazer, existe o que podemos fazer como indivíduos e comunidades. O que não pode existir é pensar que não podemos fazer nada. Uma pequena mudança de atitude já é uma mudança. Ler esse texto e se informar já são atitudes que geram mudança. Eu pensei em uma porção de conselhos que eu poderia dar, mas esses conselhos valem para mim, para a minha realidade. O que eu acho que seria mais interessante é cada um procurar o que pode ser feito de uma maneira prática de acordo com a sua realidade. As sugestões existem e, como eu disse, o que não vale é não fazer nada.

 

Referências:

Ribeiro H & Assunção, JV. (2002). Efeitos das queimadas na saúde humana. Estudos Avançados, 16(44), 125-148.

Bowd EL, Banks SC, Strong CL, Lindenmayer DB. (2019). Long-term impacts of wildfire and logging on forest soils. Nature Geoscience, 12: 113–118.

Australian National University. (2019). Forest soils need many decades to recover from fires and logging. ScienceDaily. Retrieved September 2, 2019.

Kimberley T. Davis, Solomon Z. Dobrowski, Philip E. Higuera, Zachary A. Holden, Thomas T. Veblen, Monica T. Rother, Sean A. Parks, Anna Sala, Marco P. Maneta. Wildfires and climate change push low-elevation forests across a critical climate threshold for tree regeneration. Proceedings of the National Academy of Sciences, 116 (13) 6193-6198.

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Uma aranha que “amamenta” e a percepção dos avanços científicos pela população.

O texto de hoje é sobre uma descoberta científica e a importância da pesquisa básica. Esse tópico surgiu por conta de uma reportagem a respeito da dita descoberta que eu falo a seguir e os comentários de alguns leitores.

A descoberta

Um time de pesquisadores do Jardim Botânico de Xishuangbanna, Universidade de Hubey e Instituto de Zoologia Kunming, todos na China, descobriu que uma espécie de aranha saltadora, Toxeus magnus (Figura 1), “amamenta” seus filhotes e mostra um cuidado parental por mais tempo que o usual para esse tipo de animal. E sim, é isso mesmo que você pensou: essas duas características juntas são basicamente o que definem os mamíferos. Pensa na surpresa dos cientistas quando descobriram uma aranha com esses comportamentos.

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Figura 1: Aranha Toxeus magnus com os filhotes “mamando”. Zhenqi Chen et al.

A pesquisa não começou com a hipótese da amamentação. Na verdade a primeira coisa que o grupo notou foi que os filhotes dessa espécie de aranha passavam um tempo consideravelmente longo no ninho comparado com outras espécies de aranhas saltadoras. Isso fez os cientistas levantarem a hipótese de que os pais ofereciam cuidado parental e alimentação à prole, mas como? Os cientistas notaram que a aranha mãe não levava alimentos para dentro do ninho, então eles formularam três hipóteses de como a aranha estaria alimentando seus filhotes:

1-    Ela poderia estar alimentando os filhotes através de regurgitação;

2-    Os filhotes poderiam estar ingerindo ovos não fecundados, comportamento que já foi visto em outros invertebrados;

3-    Ou ainda poderia estar acontecendo alimentação fecal.

Depois de alguns testes e observações vieram mais surpresas: nenhuma dessas hipóteses estava correta!

Numa noite, em seu laboratório, um dos autores do estudo, Chen, notou que um filhote estava atrelado à mãe, como um mamífero que é amamentado. Esse deve ter sido aquele momento que o cientista disse: Eureka! (mentira, cientistas nem fazem isso, haha). Voltando a seriedade, segundo Chen, esse foi o momento que ele decidiu testar outra hipótese: a de que a aranha mãe estaria “amamentando” seus filhotes.

Eles fizeram uma porção de testes para avaliar o conteúdo do “leite” e descobriram que era composto de proteínas, carboidratos e açúcares. Uma observação é que a quantidade de proteína do “leite” de aranha é 4 vezes superior à quantidade de proteína do leite de vaca. Logo que as aranhas nascem (entre 2 e 36 em cada postura), elas ingerem gotículas de “leite” que a aranha mãe deixa em torno do ninho, mas logo que esse “leite” acaba, elas começam a sugar diretamente do canal do nascimento da mãe. Elas continuam se alimentando exclusivamente desse “leite” até atingirem a maturidade sexual e deixarem o ninho.

Chen e o grupo responsável pela pesquisa falam que essa é uma descoberta importante no ramo evolutivo, pois mostra que o cuidado parental evoluiu mesmo em organismos considerados menos complexos. Eles ressaltam que a evolução desse comportamento é um indicativo de situações extremas que pedem soluções extremas para a sobrevivência da prole, já que a mãe é bastante exigida (quem é mãe sabe do que eu estou falando). Além disso, a composição desse fluido, antes desconhecido da ciência, pode revelar algumas surpresas.

Ok, mas porque eu queria mostrar a importância da pesquisa básica nesse texto?

Bom, então vamos a segunda parte: Porque essa descoberta é importante?

Primeiramente eu tive a ideia de falar sobre isso após ler os comentários de uma reportagem sobre essa pesquisa publicada no Facebook. Alguns comentários falavam sobre a surpresa da pesquisa, mas outros diziam que pesquisadores estavam perdendo tempo pesquisando essas “coisas inúteis” ao invés de pesquisar a cura do câncer por exemplo. A foto abaixo é um exemplo do conteúdo dos comentários:

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Figura 2: Exemplo de comentário na publicação da reportagem sobre a descoberta do comportamento da aranha.

Como uma pessoa que passou a vida acadêmica toda fazendo pesquisa básica, esse tipo de comentário me afeta bastante. Quando as pessoas me perguntavam por que, ao invés de estudar evolução molecular de primatas, eu não ia estudar algo que fosse útil eu ficava sem saber o que responder e falava apenas que eu estudava evolução de primatas porque eu gostava. Hoje eu tenho uma visão maior da pesquisa básica e sua importância e penso que o fato de ter muitas pessoas que não entendem isso é consequência de uma falha nossa como cientistas e comunicadores. Cientistas precisam aprender a se comunicar com a comunidade leiga de maneira que todos entendam o porquê é necessário tanto pesquisa aplicada, quanto pesquisa básica. A pesquisa básica é a fundação de conhecimento para que a pesquisa aplicada possa existir. Por exemplo, Carl Sagan, em seu livro “O mundo assombrado pelos demônios”, no capítulo em que fala sobre as contribuições do matemático e físico James Clerk Maxwell, aproveita para explicar porque a ciência básica e a curiosidade do cientista são tão importantes:

Como a imagem do cientista louco à qual está intimamente associado, o estereótipo do cientista nerd está disseminado em nossa sociedade. O que há de errado com um pouco de zombaria bem-humorada à custa dos cientistas? Se, por qualquer razão, as pessoas não gostam do cientista estereotipado, é menos provável que dêem apoio à ciência. Por que subsidiar pequenos projetos absurdos e incompreensíveis propostos por malucos? Bem, sabemos a resposta para essa pergunta: a ciência recebe apoio financeiro porque gera benefícios espetaculares em todos os níveis da sociedade, como já afirmei neste livro. Por isso, aqueles que acham os nerds desagradáveis, mas ao mesmo tempo desejam os produtos da ciência, enfrentam uma espécie de dilema. Uma solução tentadora é dirigir as atividades dos cientistas. É só não lhes dar dinheiro para saírem a pesquisar por caminhos estranhos; em vez disso, é preciso dizer-lhes do que precisamos – esta invenção ou aquele processo. Não é o caso de subsidiar a curiosidade dos nerds, mas aquilo que trará benefícios à sociedade. Parece bastante simples. O problema é que dar ordens a alguém para criar uma invenção específica, ainda que o preço não constitua obstáculo, não garante que ela seja realizada. Pode haver uma base de conhecimento ainda ignorada, sem a qual ninguém conseguirá construir o invento que se tem em mente. E a história da ciência mostra que tampouco se pode procurar esses conhecimentos básicos de modo dirigido. Eles podem surgir das cogitações ociosas de um jovem solitário em algum lugar isolado. São ignorados ou rejeitados mesmo por outros cientistas, às vezes até que surja uma nova geração destes. Exigir grandes invenções práticas e, ao mesmo tempo, desencorajar a pesquisa movida pela curiosidade seria espetacularmente contraproducente.

Ele continua, durante o capítulo, dando exemplos práticos de como invenções incríveis não teriam saído do papel (e nem da cabeça de ninguém) caso não houvesse conhecimento prévio de base. Agora volte um pouco para o início do texto. Pode parecer que a pesquisa sobre o comportamento da aranha não acrescenta em nada na sua vida, mas e se daqui a pouco o “leite” produzido pela aranha carrega uma substância capaz de ser utilizada como um potente antibiótico? Ou ele pode ter alguma molécula capaz de inativar uma célula cancerígena. Ou ainda o cuidado parental que a aranha demonstra pode instigar a curiosidade de outros cientistas que também pesquisam insetos e vamos acabar por descobrir que esse é um comportamento mais comum do que se imagina, acabando com a noção de que somente animais mais complexos o demonstram. Eu poderia ficar aqui citando diversos “e se…?”, mas acho que você já entendeu o meu ponto: Não há avanços científicos sem pesquisa de base.

Mais um adendo

Quando eu estava no processo de escrita desse texto, me deparei com outro ótimo exemplo de pesquisa básica que gera conhecimento para uma futura pesquisa aplicada: Um grupo de pesquisadores do John Innes Centre, na Inglaterra, publicou um estudo no mês de dezembro, na revista Nature sobre como o catnip (Nepeta catariaaquela plantinha que deixa os gatos malucos) produz a substância psicoativa. Você vai se perguntar, eu sei, porque a Nature, essa revista de tamanho prestígio científico, publicou uma pesquisa sobre a substância que deixa os gatos drogados?

Bom, não foi à toa. Um dos conhecimentos extraídos desta pesquisa vai ser utilizado para entender melhor como outra molécula utilizada como quimioterápico (semelhante à substância psicoativa do catnip) é produzida pelas plantas. Talvez com esse conhecimento em mãos seja possível fabricar o quimioterápico sinteticamente, podendo diminuir seu custo.

Referências:

Zhanqi Chen, et al. Prolonged milk provisioning in a jumping spider. Science (2018), 362 (6418): 1052 – 1055.

A curiosa aranha que amamenta seus filhotes. BBC News Brasil (2018).

Carl Sagan. O mundo assombrado pelos demônios. Random house (1995).

Benjamin L. Lichman, et al. Uncoupled activation and cyclization in catmint reductive terpenoid biosynthesis. Nature Chemical Biology (2018), 15: 71 – 79.

How catnip makes the chemical that causes cats to go crazy. ScienceDaily. ScienceDaily, 11 December 2018.

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Mãe Neandertal e pai Denisova. Quem era Denny, a primeira humana híbrida encontrada?

Atualmente o Homo sapiens é a única espécie de humanos que existe na Terra, mas milhares de anos atrás coexistiam diferentes espécies de humanos no globo. Se essas espécies conviviam pacificamente ou não ainda é motivo de discussão entre pesquisadores de evolução humana. O que se sabe é que, em alguns momentos, essas espécies de humanos se reproduziam gerando descendentes híbridos. Até pouco tempo, no entanto, não havia sido encontrado nenhum registro fóssil híbrido, mas isso mudou com a publicação dos resultados de um estudo que analisou um fragmento de osso encontrado em uma caverna na Sibéria. Segundo esse estudo, de autoria de Viviene Slon do Instituto Max Planck da Alemanha e colaboradores, publicado no último dia 22 de agosto na revista Nature, o fragmento de osso encontrado pertencia a uma adolescente de 13 anos cujo pai era da espécie Homo denisovensis (Denisovanos) e a mãe era Homo neanderthalensis (Neandertais). A adolescente, apelidada de Denny, foi encontrada num sítio arqueológico na Caverna de Denisova, na Sibéria, onde viveu há aproximadamente 90 mil anos. Essa caverna ficou mais conhecida em 2008, quando o mesmo grupo de pesquisa alemão sugeriu, através de análises de DNA,  que os hominídeos encontrados ali pertenciam a uma nova espécie humana, o H. denisovensis. Até agora essa espécie só foi encontrada nessa área.

fragmento de osso

Figura 1: Fragmentos de ossos humanos encontrados na Caverna de Denisova. Créditos da imagem: Thomas Higham /Universidade de Oxford.

Quando uma descoberta dessas aparece, um dos maiores cuidados que os pesquisadores têm é garantir que a amostra não está contaminada e não vai gerar resultados errados. Para ter certeza que o fragmento encontrado pertenceu realmente a uma espécie híbrida, foram realizados diversos testes que compararam características do genoma de Denny com genomas de neandertais e denisovanos. Os resultados, um após o outro, mostraram que o osso encontrado pertencia realmente a um híbrido, excluindo a possibilidade de contaminação da amostra. Essa etapa do trabalho foi muito importante, pois essa caverna abrigou não só denisovanos, como também neandertais e humanos modernos ou Homo sapiens.

Os dados coletados pelos pesquisadores sugerem que Denny não foi o primeiro híbrido dessa população. O pai de Denny, que era denisovano, também tinha resquícios de DNA neandertal na sua genealogia. O parente ancestral neandertal do pai de Denny teria vivido entre 300 e 600 gerações antes. Dos seis indivíduos H. denisovensis que tiveram o DNA nuclear recuperado dentro da Caverna de Denisova, somente Denny e seu pai mostram indícios de fluxo gênico entre duas espécies. Porém, como mencionado anteriormente, a Caverna de Denisova não foi habitada somente na pré-história. Lá também foram encontrados fragmentos de ossos de humanos modernos, H. sapiens. Em alguns desses H. sapiens foi possível detectar mistura genética com neandertais ocorridas numa época em que as duas espécies habitavam o globo terrestre. A diferença de Denny para esses outros indivíduos é que Denny é uma híbrida de primeira geração, ou seja, ela é filha de dois indivíduos de espécies diferentes. Um híbrido de primeira geração nunca havia sido encontrado anteriormente, por isso a sua importância e a comoção com a sua descoberta. Os outros indivíduos encontrados, como o pai de Denny, por exemplo, mostram sinais de mistura entre espécies que teria ocorrido muitas gerações antes deixando vestígios no DNA.

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Figura 2: Pesquisadoras trabalhando na escavação da Caverna de Denisova. Crédito da imagem: Bence Viola/ Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva.

O que falta agora é um panorama mais amplo sobre como ocorriam essas interações que acabavam por gerar humanos híbridos. No caso do H. denisovensis falta ainda mais. Como os restos recuperados dessa espécie se restringem a alguns fragmentos de ossos e dentes, ainda não se conhece a anatomia desses humanos. Apesar disso, alguns pesquisadores sugerem que eles fossem fisicamente semelhantes a neandertais. Outra coisa que é difícil de inferir é em quais situações esses encontros ocorriam. Nesse campo pode-se especular bastante. É bem provável que as diferentes espécies de humanos não convivessem numa mesma população, fazendo com que esses encontros fossem esporádicos e temporários. Uma dessas situações de encontro poderia ser em um cenário nada amigável, como guerras por defesa de território, por exemplo. Uma das espécies invadia o território da outra e, como já vimos muitas vezes, a maioria dos homens era morta e as mulheres subjugadas e abusadas. Outra possibilidade seria o encontro entre indivíduos isolados da população, como ocorre em outras espécies animais como lobos e chacais, por exemplo. Nesses encontros há troca genética e geração de indivíduos híbridos, mas, assim como os pais, é possível que esses híbridos continuem isolados da população. É provável que ambos cenários, e muitos outros diferentes, acontecessem concomitantemente. Apesar disso, o que muitos cientistas concordam é que a saúde desses híbridos não era das melhores. No mundo animal, geralmente quando há geração de espécimes híbridos, estes apresentam mais anomalias que as espécies originais e frequentemente são inférteis.

As buscas continuam, tanto por mais indivíduos híbridos, quanto por mais H. denisovensis. Os únicos exemplares de denisovanos estão na caverna de Denisova. O grupo alemão, principal grupo de pesquisa da caverna, continua atrás de pistas que nos mostrem como era a vida dos nossos antepassados. Muitas descobertas ainda estão por vir.

Referências:

Viviane Slon et al., The Genome of the Offspring of a Neanderthal Mother and a Denosivan Father. Nature. 2018. DOI: 10.1038/s41586-018-0455-x.

Jornal El País. Achada a primeira filha fruto de sexo entre duas espécies humanas diferentes.

Jornal El País. O sexo entre espécies e os segredos de Denny, a primeira híbrida.

Nature News. Mum’s a Neanderthal, Dad’s a Denisovan: First discovery of an ancient-human hybrid.

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Declínio populacional de anfíbios: De onde veio o fungo que está causando a morte desses animais no mundo todo?

Desde o início da minha graduação em ciências biológicas, há muito, muito tempo (mentira, era 2004, nem é tanto tempo assim), numa galáxia muito, muito distante (para alguns é bem distante mesmo, mas pra mim é logo ali em Porto Alegre) eu ouvia falar sobre o declínio populacional das espécies de anfíbios. Nas aulas de zoologia, os professores e professoras explicavam que esse declínio era mais acentuado nesse grupo animal por causa de um fungo que os atingia e causava alta mortalidade. Muitos falavam sobre a possível extinção desses animais, já que eles sofrem não só a pressão da perda de habitats e das mudanças climáticas, mas também tem que lidar com esse patógeno que diminui suas chances de sobrevivência. O fungo que atinge os anfíbios é o Batrachochytrium dendrobatidis (BD para os íntimos). Ele causa uma doença chamada quitridiomicose. Algumas espécies de anfíbios anuros, como sapos, pererecas e rãs, possuem imunidade contra esse fungo, ou seja, eles carregam o patógeno, mas não apresentam sintomas de infecção. Isso faz deles um ótimo vetor na disseminação desse fungo.

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Figura 1: Zoósporo de Batrachochytrium dendrobatidis em microscopia eletrônica. Fonte: Wikipedia.

Os primeiros relatos de quitridiomicose são da década de 70, mas somente em 1990 essa doença foi reconhecida como uma ameaça global ao grupo anfíbio (2). O BD dispersa seus zoósporos (célula reprodutiva) pela água e infecta larvas de anfíbios através da pele. Uma vez que o zoósporo encontra o hospedeiro, ele vai se multiplicar e novos zoósporos podem reinfectar o hospedeiro ou serem disseminados na água e infectar outros indivíduos. Uma série de fatores determinam a gravidade da infecção e possível morte do hospedeiro como temperatura da água e do ambiente, pH e até a imunidade do anfíbio. A infecção afeta principalmente a pele do animal atrapalhando processos de descamação, troca de temperatura, osmose e respiração. Os animais infectados e não imunes ao fungo demonstram letargia, anorexia, e engrossamento da pele. Esse último sintoma é o que acaba levando à morte porque faz com que a respiração, que acontece na maior parte através da pele nesses animais, fique prejudicada e o animal acaba tendo uma parada cardiorrespiratória.

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Figura 2: Ciclo de vida do fungo Batrachochytrium dendrobatidis. Adaptado de Rosenblum et al. 2010.

Durante esses quase 50 anos dos primeiros relatos de quitridiomicose e quase 30 do reconhecimento dessa ameaça aos anfíbios, muita coisa tem sido estudada, mas uma área específica ainda estava pouco explicada: a origem e evolução desse fungo. Conhecer dados sobre a origem de um parasita ajuda a entender como ele é contido no seu ambiente natural e nos dá ideias de estratégias para controlar esse parasito fora do seu ambiente. Quando inserido no ecossistema de origem, tanto animais, quanto plantas e parasitos não são considerados pragas (desde que o ecossistema não esteja desregulado). É mais simples de visualizar isso usando um exemplo animal: quando inserido no ecossistema de origem, um animal faz parte de uma cadeia alimentar e sofre uma série de pressões ambientais. Essas pressões ambientais, que podem ser disponibilidade de alimento, disponibilidade de território, presença de predadores, etc, fazem com que o animal não possa se reproduzir de maneira a se tornar uma praga e desestabilizar o ambiente. Então entender de onde veio a praga e estudar o seu ambiente ajuda a desvendar possíveis modos de contenção . E foi isso que um grupo global de cientistas, inclusive do Brasil, estavam tentando desvendar – de onde veio o BD?

Já existiam vários estudos que tentavam explicar a origem desse fungo, mas o diferencial do artigo publicado esse mês no periódico científico Science, foi a quantidade de dados utilizada. Quanto mais dados, mais robusta e próxima da realidade é uma análise. O grupo de cientistas analisou amostras de BD de América do Sul, América do Norte, Europa, África, Ásia e Oceania.

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Figura 3: Pontos mostrando a localização das amostras utilizadas no estudo. Fonte: O’Hanlon SJ, et al. 2018.

Com as amostras em mãos, eles utilizaram dados genéticos para avaliar as diferentes linhagens e pontuar a linhagem ancestral e qual a sua origem. Os resultados indicaram que a provável linhagem ancestral é asiática, proveniente da Coréia e que ela começou a se espalhar para o resto do mundo após o crescimento do comércio de anfíbios. As análises marcam o início da expansão do fungo causador de quitridiomicose entre 1898 (análise de genoma nuclear) e 1962 (análise de genoma mitocondrial). Esse intervalo de datas coincide com a expansão do comércio de anfíbios ao redor do mundo. Esses animais são comercializados por diversos motivos: animais de estimação, para medicamentos e alimentos (3). De fato, os cientistas encontraram amostras de todas as linhagens de BD em animais comercializados, mesmo com as regras internacionais que impedem a comercialização de animais infectados instituídas pela Organização Mundial de Saúde Animal.

A rota pela qual o BD começou a se espalhar pelo mundo após sair da Ásia ainda não é clara. O que se sabe é que, durante esse curto período do século XX em que houve essa expansão, o BD se diversificou em diferentes linhagens. Isso é comum de acontecer com organismos que ocupam ambientes tão diversos, mas no caso de parasitas, é preocupante. Essa diferenciação já gerou, inclusive, uma linhagem de BD altamente transmissível e virulenta conhecida como BdGPL  Quanto mais linhagens diferentes uma espécie de parasita possui, mais difícil se torna combatê-lo. A diferenciação genética (diferentes linhagens) é associada com a diversificação de características que influenciam na infecção do hospedeiro, ou seja, quanto mais diversa uma espécie de parasita, mais estratégias diferentes de infecção do hospedeiro ela terá. Para combater esse patógeno com eficiência é necessário impedir todas essas estratégias de infecção e reprodução. Então, por conta dessa diferenciação em diferentes linhagens, é provável que para combater o BD seja necessário utilizar diferentes estratégias que contemplem as características específicas de infecção e reprodução das diferentes linhagens. Atualmente, a quitridiomicose afeta aproximadamente 700 espécies de anfíbios, mas esse número tende a subir, já que somente 1.300 espécies das 7.800 descritas foram testadas até o momento. O artigo termina com um alerta para a intensificação da biossegurança envolvida no comércio de anfíbios e um apelo para futuros estudos e estratégias que visem a diminuição da disseminação da quitridiomicose e a sobrevivência do grupo anfíbio.

Referências:

1 – O’Hanlon SJ, et al. (2018). Recent Asian origin of chytrid fungi causing global amphibian declines. Science, 360 (6389): 621 – 627.

2 – Blaustein AR & Wake DB (1990). Declining amphibian populations: A global phenomenon? Trends in Ecology and Evolution, 5: 203 – 204.

3 – Carpenter AI, et al. (2014). A review of the international trade in amphibians: the types, levels and dynamics of trade in CITES-listed species.  Fauna & Flora International, Oryx, 48(4): 565–574.

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A biologia da aprendizagem

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Fonte: http://www.corujaloira.com/2015/04/18/10-dicas-para-estudar-no-feriado/

Eu adoro estudar. Procuro sempre estar aprendendo algo novo, mesmo que eu não precise saber necessariamente aquele assunto. Quando você se dispõe a aprender algo, na maioria das vezes, será sobre um assunto que você gosta. Eu adoro biologia, literatura, história e vários outros assuntos, mas eu odeio tenho extrema dificuldade em aprender línguas. O problema é que eu preciso fazer um teste de proficiência esse ano e, querendo ou não, eu tenho que aprender de verdade a falar, escrever, escutar e ler em outra língua. Foi nesse cenário que eu comecei a pensar em quais estratégias eu poderia utilizar para tornar meu aprendizado mais eficiente e menos doloroso, por assim dizer. Nesse momento eu fui estudar. Estudei e achei respostas tão interessantes que resolvi trazer algumas das coisas que a ciência diz sobre o aprendizado e compartilhar com vocês. Vamos lá!

Começando pelo início

Bem simplificadamente, quando aprendemos algo novo, essa informação chega em primeira mão a um determinado grupo de neurônios. Esses neurônios então passam essa informação adiante através de impulsos elétricos e impulsos químicos. Esse ato de “passar a informação adiante” possibilita a formação de novas conexões. Cada informação nova é recebida, processada e analisada.

Cada organismo é um universo particular, então o recebimento de informações, os impulsos gerados, as conexões formadas são dependentes de uma série de fatores como aprendizagem anterior, existência de algum tipo de lesão, desbalanço químico, entre outros. Isso significa que não adianta você seguir todas as dicas que os cientistas dão para querer aprender neurociência em um dia se você não lembra nem das aulas de biologia. Ou ainda se você estiver sob forte estresse ou muito triste ou ansiosa(o). Primeiro você precisa resolver isso porque as emoções vão influenciar como e em que velocidade você aprende.

Primeira dica: Faça exercícios!

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Fonte: http://blogeducacaofisica.com.br/beneficios-do-exercicio-fisico

Diversos estudos sugerem que fazer exercícios aumenta a capacidade de aprendizado. Uma das relações existentes entre exercícios e aumento de aprendizagem é relacionada ao hipocampo. O hipocampo é uma estrutura localizada em ambos os hemisférios cerebrais que possui diversas funções em relação à consolidação da memória e aprendizagem. Praticar exercícios aumenta a formação de novos neurônios no hipocampo (neurogênese), aumenta a “força das sinapses” nessa região (em inglês: Long term potentiation – LTP) e aumenta também a concentração de substâncias neuroprotetoras e antioxidantes que vão proteger o hipocampo de danos.

Além de afetar o hipocampo, praticar exercícios aumenta a autoestima (pelo menos em crianças e adolescentes em idade escolar). Uma melhor imagem de si mesmo faz com que você se sinta mais feliz, menos ansiosa(o) e menos estressada(o). Certamente você estará mais disposta(o) a aprender quando estiver se sentindo bem. Recentemente, um estudo de pesquisadores norte americanos, mostrou que a corrida, especificamente, tem efeitos positivos na memória, mesmo se a pessoa estiver passando por algum tipo de estresse. Segundo esse estudo, a corrida elimina o efeito maléfico do estresse na memória.

Dica número 2: Alimente-se bem!

Muita gente já deve ter ouvido falar sobre o efeito positivo de uma planta chamada Ginkgo biloba na memória. Diversos estudos suportam essa ideia, mas a pergunta que fica é o que o G. biloba tem que pode afetar o nosso cérebro? A resposta é: ele tem flavonoides.

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Fonte: http://www.aiuro.it/benessere/ginkgo-biloba-pianta-proprieta-controindicazioni-e-benefici.html

Flavonoides também podem ser encontrados em grandes quantidades em uva, chá preto, chá verde, cacau e mirtilo. O que eles fazem? Até algum tempo atrás se achava que o potencial benéfico dos flavonoides era devido ao seu poder antioxidante. Atualmente já sabemos que esse potencial vai muito além. Flavonoides podem proteger neurônios vulneráveis, aumentar a função neuronal e estimular a regeneração neuronal. Eles também protegem os neurônios contra danos causados por doenças neurodegenerativas, como Alzheimer. Como os flavonoides podem ajudar em todos esses problemas? Especula-se que eles possam modular cascatas de sinalização intracelular que controlam sobrevivência, morte e diferenciação neuronal. Por exemplo, um estudo de 2007 de um grupo francês mostrou, após 10 anos de acompanhamento, que um maior consumo de flavonoides diminui as chances de sofrer com doenças neurodegenerativas e aumenta a capacidade cognitiva. Alguns estudos também mostram que um tipo especial de flavonoides, as isoflavonas, encontradas na soja, por exemplo, podem melhorar as capacidades cognitivas e memórias de mulheres na menopausa.

Resumindo, a ingestão de flavonoides não vai modificar seu cérebro de um dia para o outro e pode não funcionar se a sua intenção é memorizar todo o conteúdo do semestre para uma prova na semana que vem, mas certamente protege seu cérebro contra possíveis problemas no futuro e pode potencializar aos poucos sua capacidade cognitiva e de memória.

Dica número 3: Relaxe!

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Fonte: http://selmasanttos.blogspot.com.br

Eu sei, essa é uma dica que pode ser muito difícil de ser seguida. Com a vida corrida, milhares de coisas pra fazer, trabalho acumulado, chefe pressionando, artigo para escrever, análises para entregar o mestrado atrasadas, e muitas outras tarefas, relaxar pode parecer impossível. Mas acredite, a ciência diz que todas essas tarefas podem parecer mais fáceis se você tirar um tempo para desestressar. Uma revisão de 2016 compilou  uma série de dados que mostram que estresse crônico está associado com a degeneração estrutural e o mau funcionamento do hipocampo e do córtex pré-frontal. Nós já falamos que o hipocampo está relacionado com a consolidação da memória e a aprendizagem. Já o córtex pré-frontal está envolvido em uma série de funções como tomada de decisões, resoluções de problemas complexos, planejamento, atenção e memória. A boa notícia é que os problemas no cérebro causados pelo estresse não são permanentes. Segundo uma das autoras do estudo, uma professora do departamento de psiquiatria geriátrica da Universidade de Toronto, antidepressivos e exercícios (olha eles aí novamente) podem atuar revertendo a degeneração e o mau funcionamento dessas estruturas cerebrais.

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Fonte: http://www.bcslogic.com/time-to-relax/

Dica número 4: Durma bem!

Dormir é tudo de bom. Uma boa noite de sono pode resolver muitos problemas, pode te dar novas ideias, pode te fazer relaxar, enfim, só coisa boa. E aquela velha lenda de que podemos aprender algo enquanto dormimos é verdade? Bom, sim e não. Calma que eu já te explico.

Primeiro o “não”. Se você está pensando naquela cena de filme em que uma pessoa coloca uma fita pra tocar sobre algo que ela quer aprender, vai dormir e no dia seguinte acorda expert naquele assunto saiba que isso só acontece nos filmes mesmo. Até hoje não há estudos mostrando que isso seja possível.

Agora o “sim”. Se você considerar que enquanto dormimos, nossa mente se reorganiza e trabalha para formar e consolidar memórias, então de certa maneira, nós aprendemos enquanto dormimos. Um estudo de 2017, feito por cientistas da Alemanha e Suíça, mostrou que algumas áreas do cérebro ficam extremamente ativas enquanto dormimos. Uma estrutura em particular interessou bastante os cientistas: os dendritos. Os dendritos são prolongamentos dos neurônios responsáveis pela recepção dos estímulos nervosos tanto do ambiente, quanto de outros neurônios e na transmissão desses estímulos para o corpo da célula. Os cientistas viram que há alta atividade dendrítica em certos momentos do sono que são importantes na formação e consolidação de memórias. Além disso, os cientistas também puderam ter uma ideia de como estimular esses dendritos em pessoas com dificuldades de aprendizado e memória.

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Fonte: http://tudosobrecachorros.com.br

Concluindo…

Existem várias estratégias para você aprender mais e melhor. Aqui é importante lembrar que cada indivíduo é único e que algumas táticas funcionam melhor para uma pessoa que para outra. O importante é não se desesperar (olha o estresse aí). Quando você estiver estudando aquele assunto difícil que não entra na sua cabeça de jeito nenhum, pare. Reveja o que você está fazendo, como você está (estressada(o)? Com sono? Com fome?), tente bolar uma estratégia diferente, siga algumas das dicas do texto e não desista. Você certamente é capaz.

 

Referências:

Trudeau F and Shephard R J. Physical education, school physical activity, school sports and academic performance. International Journal of Behavioral, Nutrition and Physical Activity, 2008; 5: 10.

Roxanne M. Miller, David Marriott, Jacob Trotter, Tyler Hammond, Dane Lyman, Timothy Call, Bethany Walker, Nathanael Christensen, Deson Haynie, Zoie Badura, Morgan Homan, Jeffrey G. Edwards. Running exercise mitigates the negative consequences of chronic stress on dorsal hippocampal long-term potentiation in male mice. Neurobiology of Learning and Memory, 2018; 149: 28

Spencer J P E. Food for thought: the role of dietary flavonoids in enhancing human memory, learning and neuro-cognitive performance. Proceedings of the Nutrition Society, 2008; 67: 238.

Letenneur L, Proust-Lima C, Le Gouge A, Dartigues J F, and Barberger-Gateau P. Flavonoid Intake and Cognitive Decline over a 10-Year Period. American Journal of Epidemiology, 2007; 165 (12): 1364.

Linda Mah, Claudia Szabuniewicz, Alexandra J. Fiocco. Can anxiety damage the brain? Current Opinion in Psychiatry, 2016; 29 (1): 56

Julie Seibt, Clément J. Richard, Johanna Sigl-Glöckner, Naoya Takahashi, David I. Kaplan, Guy Doron, Denis de Limoges, Christina Bocklisch, Matthew E. Larkum. Cortical dendritic activity correlates with spindle-rich oscillations during sleep in rodents. Nature Communications, 2017; 8 (1).

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Trigo sem glúten é possível? Estamos chegando lá

Provavelmente você já ouviu falar de glúten, doença celíaca, alergia ao glúten, intolerância ao glúten, etc. Mas você sabe o que são essas coisas todas e por que elas são importantes para muitas pessoas? Então acompanha o texto para saber mais.

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Figura 1: Planta de trigo, sementes e farinha. Crédito da imagem: Destaque rural.

O trigo é uma gramínea da mesma família do centeio e da cevada. Além da classificação, eles também compartilham um grupo de proteínas chamada glúten. O glúten é composto por gliadinas e gluteninas, que são proteínas que se diferenciam pela sua solubilidade em álcool (gliadinas são solúveis e gluteninas são insolúveis). Essas duas proteínas, em conjunto com albuminas, globulinas e o amido, são responsáveis pela elasticidade que a farinha de trigo confere a pães, bolos, tortas e massas. Para a maioria da população, essas proteínas não causam nenhum dano, mas para um determinado grupo de pessoas elas podem ser muito problemáticas. Esse grupo de pessoas são aquelas que tem uma condição chamada doença celíaca. Essa doença é caracterizada pela intolerância ao glúten, causada por uma reação imunológica à proteína gliadina, e que leva a uma reação inflamatória no intestino delgado. Essa reação em longo prazo causa atrofia das vilosidades do intestino delgado,  resultando em má absorção de nutrientes. Geralmente a doença começa a mostrar sintomas ainda na infância, mas existem pessoas que não demonstram ou apresentam sintomas não clássicos e só descobrem que tem a doença mais tarde. Entre os sintomas mais recorrentes estão diarreia crônica, vômitos, irritabilidade, anorexia, déficit de crescimento e anemia. Hoje em dia existem métodos diagnósticos sorológicos, mas os médicos ainda indicam a biópsia do intestino para a confirmação da doença. O tratamento consiste em retirar completamente o glúten da dieta. Atualmente, a literatura médica já reconhece que a doença celíaca pode apresentar diversos sintomas além dos clássicos citados acima. O que ainda se discute é se as pessoas que apresentam os sintomas não clássicos devem ser classificadas como celíacas ou somente sensíveis ao glúten. De qualquer maneira, o tratamento para essas pessoas continua sendo a retirada do glúten da dieta. A Bruna já publicou um texto ótimo sobre dietas sem glúten aqui no blog. Dá uma olhada aqui  para saber mais.

É importante chamar a atenção de que a doença celíaca ou a sensibilidade ao glúten não pode ser confundida com alergia. A alergia ao glúten nada mais é do que alergia ao trigo. É uma alergia alimentar caracterizada por uma reação exacerbada do organismo a qualquer proteína presente no trigo, glúten ou não, levando à produção de anticorpos que desencadeiam respostas imunológicas. A alergia não causa inflamação no intestino delgado ou outros sintomas de doença celíaca. Além disso, caso a alergia não seja específica ao glúten, mas a outras proteínas do trigo, o paciente pode ingerir glúten de outras fontes, como cevada ou centeio.

Como eu disse anteriormente, o tratamento para pessoas celíacas ou sensíveis ao glúten é a retirada deste composto da dieta. Pode parecer fácil, mas não é. Para mostrar como é difícil, eu quero propor um exercício: eu convido você a analisar tudo que você comeu hoje e separar entre coisas com e sem glúten. A maioria das pessoas deve ter comido algum tipo de pão, alguma massa, bolo, um empanado, ou mesmo bebido uma cervejinha. Se você come fora, deve estar imaginando o quão difícil é comer algo que não esteja nessa lista. E é mesmo. Pensando nisso, cientistas começaram a trabalhar em maneiras de produzir uma variedade de trigo que não expressasse as proteínas do glúten. E é sobre um desses trabalhos que eu falo hoje.

Um grupo de cientistas de universidades da Espanha e dos Estados Unidos tiveram sucesso em produzir uma variedade de trigo com baixo teor de glúten. Em primeiro lugar, você deve estar se perguntando: Por que temos que falar sobre um estudo que produziu trigo com baixa quantidade de glúten, e não um trigo com nenhum glúten? Porque a alfa-gliadina (AG), que é a proteína que causa a maior parte das reações nas pessoas celíacas, é expressa por aproximadamente 100 genes espalhados por três cromossomos do trigo. Por causa dessa grande quantidade de genes expressando uma proteína em diferentes cromossomos, técnicas tradicionais de mutagênese  e cruzamentos de plantas não tiveram resultados em diminuir a quantidade de glúten das plantas. Para tentar solucionar o problema, os pesquisadores utilizaram uma variação da técnica de manipulação genética CRISPR/Cas9. A Franciele fez um texto aqui no blog sobre essa técnica. Se você ainda não leu, dá uma olhada aqui. Com essa técnica, eles foram capazes de diminuir a expressão de AG e, com isso, o trigo resultante foi menos imunorreativo para pessoas celíacas, mesmo não sendo totalmente sem glúten.

Para conseguir alcançar o objetivo de produzir uma variedade de trigo com menor teor de glúten, os pesquisadores construíram duas moléculas de RNA guia  (sgRNA 1 e 2) que tinham como alvo regiões adjacentes à sequência codificadora do epítopo imunodominante  da AG (Ufa!). A função dos sgRNA era se ligar à sequência alvo, fazendo com que os genes adjacentes não pudessem ser expressos. Eles fizeram testes em duas espécies de trigo: o trigo comum (Triticum aestivum) e o trigo duro (Triticum durum). Através das imagens geradas com gel de poliacrilamida (Figura 2) foi possível verificar que a expressão de AG diminuiu em plantas tratadas com os sgRNA, ou seja, eles foram capazes de se ligar à sequência alvo e impedir a expressão dos genes. Além de géis, também foram realizados sequenciamento e espectrometria de massa para avaliar se houve ou não redução de AG nas plantas modificadas geneticamente. Ambos os testes confirmaram os resultados dos géis, mostrando que houve redução da expressão de AG nas plantas testadas. Finalmente, para avaliar se o trigo com menor expressão de AG causaria menos respostas imunológicas em pessoas intolerantes ao glúten, foram realizados testes ELISA com dois anticorpos que tem como alvo diferentes epítopos. Os resultados dos testes com ambos os anticorpos mostraram significante redução da reatividade ao glúten (até 85% menos reativo) das plantas modificadas com o sgRNA 2 quando comparados com as plantas selvagens ou modificadas com o sgRNA1. Além disso, os cientistas conseguiram demonstrar que as modificações que impediram boa parte da expressão de AG nas plantas testadas foram herdadas na geração seguinte e não causaram mutações inespecíficas. Isso faz com que, a partir de agora, seja possível utilizar essas plantas com menor teor de AG em programas de cruzamentos para gerar uma cultivar com menos glúten capaz de ser produzida em grande escala.

 

 

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Figura 2: Géis de poliacrilamida mostrando as diferenças na expressão de alfa-gliadina entre as plantas não modificadas (BW208, THA53, DP) e as originarias das plantas modificadas por CRISPR/CAS9 (todas as outras colunas). É possível visualizar bandas de proteínas referentes a três tipos de gliadinas: ômega, gama e alfa-gliadinas. Nas plantas modificadas é bem menor a expressão de alfa-gliadina.

Pode ser que um trigo com menor teor de glúten não seja a solução dos problemas de todas as pessoas que sofrem com a intolerância, mas é um passo bem promissor! Enquanto variedades de trigo com teor reduzido de glúten não chegam às prateleiras, existem diversas maneiras de substituir a farinha de trigo. Além de farinhas sem glúten, como farinha de arroz, de grão de bico ou de trigo sarraceno alguns tipos de trigo (trigo espelta e trigo kamut) são bem tolerados pelas pessoas com pouca sensibilidade ao glúten. Além disso, há indícios de que o herbicida glifosato possa ser o responsável pela grande alta nos índices de doença celíaca atualmente, já que ele também pode causar uma série de sintomas encontrados em pessoas celíacas como problemas digestivos e deficiências de alguns aminoácidos como triptofano, tirosina e metionina. Além disso, os casos de doença celíaca aumentaram na mesma proporção do aumento do uso do herbicida glifosato nas culturas de trigo. Se esse for o caso, consumir farinha de trigo e produtos com glúten orgânicos melhorariam os sintomas. De qualquer maneira, não esqueça: converse com seu médico ou nutricionista antes de promover uma mudança na dieta.

Referências:

Artigo disponível para download: Susana Sánches-Léon, Javier Gil-Humanes, Carmen V. Ozuna, María J. Giménez, Carolina Souza, Daniel F. Voytas, Francisco Barro. Low-gluten, non-transgenic wheat engineered with CRISPR/Cas9 (2017). Plant Biotechnology Journal. DOI: 10.1111/pbi.12837.

Herbert Wieser. Chemistry of gluten proteins (2007). Food Microbiology, 24 (2): 115 – 119.

Gluten: What Is Gluten? Facts, Foods and Allergies. Medical News Today.

Qual é a diferença entre doença celíaca, intolerância ao glúten e alergia ao trigo?

Genetically modified wheat used to make coeliac-friendly bread. New Scientist.

Anthony Sansel and Stephanie Seneff. Glyphosate, pathways to modern diseases II:
Celiac sprue and gluten intolerance (2013). Interdisciplinary Toxicology, 6 (4): 159:184.

 

 

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As áreas de proteção ambiental estão cumprindo seu papel de preservar a biodiversidade?

Preservar a biodiversidade é uma preocupação constante para vários cientistas e não cientistas. Por conta disso, existem diversos projetos, trabalhos e leis sobre o tema, além do esforço de diferentes profissionais para a conscientização da importância de se preservar habitats, animais, plantas, ecossistemas, etc. Atualmente, aproximadamente 14% do território terrestre são consideradas áreas de proteção ambiental, mas essas áreas realmente estão fazendo seu papel de proteger a biodiversidade do planeta? Qual o critério utilizado para escolher essas áreas? Essas perguntas foram respondidas em um artigo encabeçado por uma cientista brasileira que atua na Universidade Federal de Goiás e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (juntamente com colegas de outras universidades nacionais e internacionais) e publicado na revista PNAS  no último mês.

O artigo, de autoria de Fernanda T. Brum e colaboradores, sugere áreas prioritárias para a conservação de mamíferos. A diferença desse artigo para os demais é que, para sugerir essas áreas, os pesquisadores se basearam em três dimensões de diversidade: taxonômica, funcional e filogenética.

Mas, o que significa cada tipo de diversidade e qual a sua importância para a conservação? A diversidade taxonômica é uma medida do número de espécies presentes numa área. É uma importante medida quantitativa, mas se utilizada sozinha, pode superestimar a biodiversidade de uma região. A diversidade funcional expressa o grau de diferenças funcionais entre espécies. Ela leva em consideração o papel dos organismos no ecossistema e o quanto esse papel é importante para a manutenção desse ecossistema, como por exemplo, o serviço de polinização feito pelas abelhas ou ainda, o serviço de fluxo de nutrientes exercido pela ictiofauna. Essas características funcionais podem ser morfológicas, fisiológicas, reprodutivas ou comportamentais. Por fim, a diversidade filogenética leva em conta a história evolutiva das espécies contidas em uma determinada área. Assim, a história evolutiva captura a singularidade das linhagens através do tempo e nos dá uma ideia do risco de extinção a que uma espécie está submetida.

Atualmente, há uma discordância entre diversos estudos que utilizam as três dimensões de diversidade para sugerir ou avaliar áreas de preservação ambiental. Alguns estudos mostram que há correlação entre as três dimensões de diversidade em algumas áreas protegidas, ao passo que outros mostram uma enorme falta de congruência geográfica em áreas de preservação, ou seja, algumas áreas são selecionadas baseando-se em um ou outro tipo de diversidade e, por isso, acabam não representando e nem protegendo a biodiversidade local de maneira adequada.

No artigo, Brum e colaboradores encontraram áreas importantes para a conservação de mamíferos baseadas nas três dimensões de diversidade. Segundo os autores, as áreas prioritárias baseadas em diversidade funcional e filogenética tiveram bastante sobreposição, enquanto que as áreas selecionadas baseadas em diversidade taxonômica foram esparsas. A figura abaixo mostra as áreas selecionadas levando em consideração cada uma das diversidades separadas e sobrepostas. Fica evidente que não existe muita sobreposição das áreas selecionadas pelos diferentes índices de diversidade (de fato, somente 4,6% das áreas foram sobrepostas). Isso evidencia a importância da escolha de áreas prioritárias para conservação baseada em mais de uma dimensão ecológica a fim de proteger a biodiversidade como um todo.

Figura 1 -teste

Figura 1: áreas de preservação ambiental sugeridas com base em três dimensões de diversidade: dimensão taxonômica (taxonomic dimension), dimensão filogenética (phylogenetic dimension) e dimensão funcional (trait dimension). O último mapa mostra áreas de sobreposição entre as múltiplas dimensões.

 

Segundo uma das autoras do trabalho, Ana D. Davidson, proteger diferentes dimensões de biodiversidade ajuda a garantir o potencial evolutivo das espécies para se adaptar em um mundo que muda rapidamente e, assim, resguardar a sua contribuição na natureza da qual todos dependemos. Dos 4,6% das áreas prioritárias que guardam as três dimensões de diversidade, apenas 1% estão protegidas atualmente. Os resultados do artigo de Brum e colaboradores concordam com outras pesquisas que afirmam que diversas áreas protegidas não possuem um alto valor para conservação. Na maioria das vezes, essas áreas são escolhidas por serem remotas ou de baixo valor econômico. Considerando que 14% de áreas terrestres são protegidas atualmente no mundo, Brum e colaboradores sugerem que as áreas prioritárias selecionadas para futura conservação poderiam corresponder aos 3,6% restantes que possuem concordância entre as três dimensões de diversidade (Figura 2). Dessa maneira, não só teríamos áreas de proteção mais eficientes, como também seria atingida a meta recomendada pelo Plano Estratégico para 2011-2020 proposto na 10º Convenção de Diversidade Biológica (17% do território terrestre como área protegida).

Figura 2-Fernanda brum

Figura 2: Mapa mostrando áreas de proteção ambiental existentes (verde), áreas com sobreposição das três dimensões de diversidade (marrom) e áreas com sobreposição das dimensões de diversidade atualmente protegidas (laranja). No artigo, os autores sugerem que as áreas em marrom sejam prioridade para conservação, pois guardariam as três dimensões de diversidade, sendo assim, mais eficientes.

Infelizmente, colocar o plano em ação não é tão fácil. Outros fatores devem ser levados em consideração antes de transformar as áreas identificadas no artigo em áreas de preservação, como custos, considerações políticas e sociais e fundos disponíveis para a compra de terras. Além disso, o trabalho de Brum e colaboradores identifica áreas prioritárias para a preservação de mamíferos, mas outros grupos de organismos também devem ser levados em consideração. Conservar a biodiversidade vai além da conservação de um ou outro grupo e é crucial para garantir a provisão dos serviços prestados pelo ecossistema e sua contribuição para o bem-estar humano.

Referências:

Fernanda T. Brum et al. (2017). Global priorities for conservation across multiple dimensions of mammalian diversity. PNAS, 144 (29): 7641-7646.

www.sciencedaily.com/releases/2017/07/170706121159.htm

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Vírus, bactérias e Chuck Norris: O que eles tem em comum?

     Resistir ao tempo e a condições adversas são habilidades de diversos vírus e bactérias (e Chuck Norris, claro. No caso é o tempo que resiste a ele). Alguns desses micro-organismos são resistentes ao congelamento, calor, seca, falta de nutrientes, etc. O que acontece quando esses micro-organismos são reativados? No caso da península siberiana de Yamal, uma bactéria reativada causou uma epidemia de Anthrax. Em 2016, um garoto de 12 anos morreu e mais de 20 pessoas foram hospitalizadas infectadas pela bactéria. A doença era considerada erradicada e há 75 anos não haviam casos de Anthrax registrados na região.

O que pode ter acontecido?

     A bactéria responsável pelo Anthrax, Bacillus anthracis, é capaz de formar endósporos (estrutura de algumas bactérias que proporcionam resistência e sobrevivência em meio a algum stress ambiental como frio ou calor excessivos, falta de nutrientes ou água, por exemplo), podendo ficar inerte por anos. Como os endósporos geralmente ficam no solo é comum que animais herbívoros ingiram esses esporos e, dessa maneira, forneçam um ambiente propício para a bactéria continuar seu ciclo de desenvolvimento. Depois que o endósporo é ingerido, o B. anthracis sai do período de latência, se multiplica e acaba causando a morte do animal. Nesse momento, a bactéria pode formar mais endósporos ou, caso as condições estejam favoráveis, infectar outros animais, inclusive o homem. Então, uma possível explicação para o que aconteceu em Yamal é que, em 2016, com a forte onda de calor que assolou a região, com temperaturas chegando a 35ºC, parte do solo, permanentemente congelado, descongelou, expondo animais mortos, principalmente renas (animais herbívoros que são a principal fonte de renda da região).  Possivelmente, há mais de 75 anos, uma dessas renas morreu infectada por Anthrax e ficou congelada no solo até o verão de 2016. A bactéria formou endósporos para resistir ao congelamento e, quando as condições se tornaram favoráveis novamente, ela pode se multiplicar e acabou por infectar uma parcela da população de Yamal.

Não são casos isolados

     Talvez você ache incrível que um organismo consiga resistir por quase 100 anos latente e após todo esse tempo continuar o seu ciclo. É realmente incrível, mas acreditem: 100 anos é relativamente pouco tempo para vírus e bactérias permanecerem em estado letárgico. Em 2014, Matthieu Legendre, pesquisador da Universidade Aix-Marseille na França, e colaboradores conseguiram reativar um vírus congelado há mais de 30 mil anos e, em 2007, um grupo de pesquisadores da Universidade de Nova Jersey e da Universidade de Boston obtiveram resultados positivos em testes de atividade metabólica de micro-organismos congelados em camadas de gelo datadas de 100 mil até oito milhões de anos atrás.

     Existem ainda outros exemplos de viabilidade de micro-organismos “adormecidos” não só no gelo, mas em diversos outros ambientes. Em 2017, Penelope Boston, astrobióloga da NASA, conseguiu reativar micro-organismos enclausurados dentro de cristais formados em uma caverna no México entre 50 mil e 10 mil anos atrás. O mais interessante é que o material genético dos organismos que ela analisou não era relacionado a nenhum outro organismo encontrado em bases de dados científicas. No final de 2016, pesquisadores do Canadá e Estados Unidos publicaram um artigo mostrando o resistoma (coleção de genes de resistência a antibióticos) de uma bactéria encontrada numa caverna no Novo México. Essa caverna e, consequentemente, os micro-organismos encontrados nela, estavam isolados da superfície há quatro milhões de anos. A bactéria em questão, Paenibacillus sp. LC231, mostrou resistência a 26 dos 40 antibióticos testados, incluindo um dos mais novos antibióticos utilizados para infecções resistentes, a daptomicina (nome comercial Cubicin®).

     Diante dos fatos expostos, surgem algumas perguntas: o que aconteceria se organismos desconhecidos entrassem em contato com nosso sistema imunológico? E se antigas bactérias super-resistentes conseguissem transferir os genes de resistência a outras bactérias? E se, simplesmente, esses organismos depois de um longo período ficassem viáveis e aptos a causar infecções e doenças novamente, trazendo epidemias consideradas erradicadas? Certamente essas são algumas questões que podem causar preocupação, mas há muito mais por trás desses estudos. Por exemplo, como uma bactéria que não tem contato com a superfície há quatro milhões de anos poderia apresentar tamanha resistência a antibióticos utilizados hoje em dia? Segundo os pesquisadores, os genes de resistência estavam inseridos no cromossomo da bactéria analisada e não havia sinais de inserções novas de elementos móveis, o que indica que esses genes estão ali há muito tempo. Através de análise filogenética, eles chegaram à conclusão que o fenótipo de resistência a diversas drogas é nativo do gênero Paenibacillus, que incluem uma gama de bactérias que vão desde as patogênicas até as fixadoras de nitrogênio. Possivelmente os mecanismos de resistência desse gênero se desenvolveram por acaso ou para combater inimigos naturais (e não os modernos antibióticos) há mais de quatro milhões de anos.

     A busca e descoberta de organismos extremófilos e altamente resistentes nos traz uma série de informações que podem ser utilizadas em diversas áreas, como meio ambiente (como o caso da onda de calor causada pelo aquecimento global em Yamal) e até astrobiologia, por exemplo. Para Penelope Boston, astrobióloga da NASA, o descobrimento de seres capazes de sobreviver em ambientes, no mínimo, inóspitos reforça a hipótese de que a vida pode não ter começado na Terra, já que alguns desses organismos sobrevivem a ambientes semelhantes aos encontrados em outros planetas e luas.

 

Referências: