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Quando um estudo é confiável? Os casos do ozônio e da hidroxicloroquina

Com o mundo inteiro passando por uma pandemia que está desafiando a ciência (e os nervos), está sendo possível acompanhar o desenvolvimento de medicamentos e possíveis tratamentos para COVID-19 (Para mais informações sobre alguns tratamentos, você pode ler esses posts aqui no blog: 1, 2, 3, 4) . Como nem todo mundo está acostumado com o andar da ciência, a chuva de notícias mostrando que uma hora tal medicamento é promissor, e na semana seguinte já não é mais, causa muita confusão na cabeça da população que só quer sair da p%%¨&%$&*$¨ do isolamento. Falta de paciência misturada com falta de conhecimento científico e gente mal intencionada acaba gerando um caos.

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Figura 1: O ânimo durante o isolamento social. Fonte: Justin Sullivan / Getty Images North America / AFP

O caso mais recente foi o que aconteceu na cidade de Itajaí (SC), onde o prefeito, que é médico, queria indicar para a população uma terapia com ozônio baseado em alguns estudos e relatos de melhoras de pacientes com COVID-19. O caso mais grave foi o da hidroxicloroquina que foi recomendada não só pelo presidente do Brasil, mas também pelo presidente norte americano, e que não tem eficácia comprovada. A confusão em ambos os casos se deu porque os defensores dessas terapias baseiam a sua opinião em estudos publicados que afirmavam que os tratamentos funcionavam. A questão toda aqui é que nem todo estudo pode ser considerado válido a nível populacional. Existem diferentes tipos de estudos para comprovar a eficácia e segurança de um medicamento e alguns são mais confiáveis que outros. Nesse texto eu vou tentar explicar um pouco quais as características de um estudo que conferem mais ou menos credibilidade.

Nesse texto aqui do blog, a autora apresenta algumas metodologias de pesquisa, conceitos e detalha quais são as classificações dos estudos. Dependendo do que se quer estudar, o desenho do estudo, a quantidade de pacientes incluídos e o tempo de observação vão ser diferentes. Como regra geral, quanto mais pacientes e variáveis avaliadas por um período maior de tempo, melhor o estudo.

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Figura 2: Diferença entre o método científico, no qual o pesquisador observa o fenômeno, formula hipóteses a faz testes que podem ou não confirmar a hipótese inicial, de outros métodos que “produzem” medicamentos, tratamentos ou teorias sem comprovação. Fonte: https://conhecimentocientifico.r7.com/metodo-cientifico/ acesso em 18 de agosto de 2020.

No caso da ozonioterapia, por exemplo, o prefeito de Itajaí citou estudos feitos na Itália e Espanha que comprovaram a eficácia desse tratamento. Um ponto importante é que em nenhuma reportagem ou entrevista ele citou que estudos são esses, então eu fui procurar o que tem publicado. Na maioria dos casos, os artigos trazem informações teóricas de outros estudos e extrapolam os resultados para chegar à conclusão que ozônio seria um possível tratamento para COVID-19. Um desses estudos, publicado na revista Antioxidantes, mostra dados de uma série de outros estudos nos quais o ozônio atuou como protetor celular em diversas condições de estresse. É um tipo de estudo de revisão, que agrupa informações sobre um determinado assunto, permite comparar essas informações de diferentes fontes e avaliar a consistência dos dados. O problema aqui é que ele não mostrou nenhum dado específico de ozônio no tratamento de COVID-19. Nem mesmo em experimentos em laboratório. Nesse caso não é um estudo que podemos nos basear para iniciar tratamento de pacientes. Num outro estudo, pesquisadores utilizam a mesma técnica, mas agora focando mais em uma característica específica. O artigo fala de problemas de microcirculação pulmonar que é característico em diversas outras doenças e faz um gancho dizendo que ozônio, em teoria, aumentaria a oxigenação, concluindo que se COVID-19 causar um problema de falta de circulação sanguínea, e consequentemente falta de oxigênio no pulmão, isso já seria evidência suficiente para usar ozônio para tratamento de COVID-19. A conclusão do artigo é ainda mais chocante:

“The use of the ozone-dilution technique in physiological solution and its infusion could also be evaluated and, in the future, the possibility of using ozone therapy with endonasal  insufflation as a substitute for the vaccine could be evaluated.”

Em tradução livre: “O uso da técnica de diluição de ozônio em solução fisiológica e sua infusão poderia ser avaliada e, no futuro, a possibilidade de uso da ozonioterapia por insuflação endonasal como um substituto da vacina poderia ser avaliado”.

Não só o artigo não traz dados clínicos e experimentais específicos de COVID-19, como ainda sugere que a terapia pode ser usada ao invés de uma vacina. Outro detalhe importante, o artigo não é revisado por pares, o que significa que os autores o escreveram e publicaram sem ninguém ler e emitir uma opinião a respeito. Para vocês terem uma ideia, todos os textos publicados aqui no blog são revisados por pelo menos duas outras pessoas e discutidos antes de serem finalizados. Isso evita erros, vieses, e falha de comunicação por exemplo. Novamente, aquele é um artigo científico? Tecnicamente sim. Tem algum valor para o conhecimento e prática clínica? Não. E porque não? Porque não traz dados de pacientes com COVID-19, não faz comparação entre pacientes que usam ozônio e os que que não usam ozônio, e absolutamente nenhum dado que nos indique que os pacientes que usam ozônio não tiveram efeito adverso, nem mesmo dados de experimentos em laboratório. Você está disposto a usar algo que nunca foi testado antes e além de não ter comprovação de eficácia, não se sabe se é seguro?

Existem registros de pelo menos dois estudos clínicos sendo feitos na China para avaliar o uso da ozonioterapia no tratamento de COVID-19. Pelo menos um deles é randomizado, ou seja, os pacientes são escolhidos aleatoriamente, o que é uma vantagem porque representa melhor a população. Ainda assim, esse estudo em andamento conta com somente 152 participantes. Quando os resultados saírem, podemos ter uma ideia melhor de como o ozônio afeta os pacientes com COVID-19.

A questão da hidroxicloroquina segue a mesma linha de raciocínio. É verdade que alguns estudos publicados mostraram resultados diretamente em pacientes tratados em hospitais, o que já é uma vantagem em relação à ozonioterapia, mas as notícias boas acabam por aí. Um dos estudos que trouxe a hidroxicloroquina para as notícias foi conduzido na França avaliando 20 pacientes infectados com COVID-19. O problema deste estudo é que 20 pacientes não representam a população. Ele é válido no sentido de despertar uma possibilidade de tratamento que precisa ser mais investigada e ponto. Não se pode dizer que porque 20 pessoas tiveram uma melhora por conta de um tratamento, aquele tratamento pode ser feito em todo mundo. Muito menos comprar estoques e estoques de um medicamento e indicar que a população se automedique porque 20 pessoas tiveram uma melhora. Quem são essas 20 pessoas? elas tinham algum problema pré-existente? eram homens? mulheres? quais eram suas idades? Um detalhe importante desse artigo é que do grupo de pacientes que iniciaram tratamento com a hidroxicloroquina, 6 morreram antes de terminar o tratamento. Nenhum paciente do grupo controle morreu. Os autores não levaram em consideração essas mortes durante a análise dos resultados, então quando eles concluem que 100% dos pacientes tratados com hidroxicloroquina e azitromicina testaram negativo para o vírus depois do tratamento, eles estão considerando somente os pacientes que terminaram o tratamento vivos. Não te parece errado não considerar e não avaliar o porquê outros pacientes morreram durante o tratamento? Já temos outros estudos maiores e com resultados confiantes mostrando que a hidroxicloroquina não oferece nenhuma vantagem no tratamento de COVID-19.

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Figura 3: Ás vezes muita informação e dados divergentes podem fazer a gente ficar confuso. Fonte: Arquivo pessoal.

Eu entendo que nem todo mundo lê e entende um artigo científico. Fica confuso e difícil avaliar em quem confiar quando muitos jargões são usados e a comunicação não é eficaz. Na situação atual, tudo que queremos é uma cura, deixar de ter medo, rever amigos e familiares e voltar a nossa rotina, mas não existe milagre. Desconfie de tudo que for muito bom pra ser verdade. Desconfie da pílula mágica ou super alimento que cura desde unha encravada até câncer. Procure diversas fontes antes de chegar a uma conclusão. Veja o que grandes organizações, como OMS, Conselhos de Medicina, institutos de pesquisa ou universidades estão falando a respeito. Nessas organizações o consenso não é baseado em uma ou outra opinião, são milhares de pesquisadores, médicos, e profissionais de saúde conversando e avaliando todos os pontos de vista. A evolução da ciência não depende da nossa opinião e não acontece do dia para a noite. É resultado de testes, experimentos, cálculos, interpretação e principalmente trabalho árduo de cientistas. Tudo o que queremos é ter uma cura, uma vacina, uma notícia positiva e estamos nos esforçando para isso, mas queremos ter certeza de que tudo o que fazemos vai ser seguro e certeiro. Como diz minha mãe, não queremos que a emenda saia pior que o soneto.

 

Referências:

Martínez-Sánchez G, Schwartz A, Di Donna V. Potential Cytoprotective Activity of Ozone Therapy in SARS-CoV-2/COVID-19. 2020. Antioxidants, 9: 389. DOI: 10.3390/antiox9050389.

Ranaldi GT, Villani ER, Franza L, Motola G. 2020. Devils and Angels: Ozonetherapy for microcirculation in covid-19. DOI: https://doi.org/10.31226/osf.io/c2jvt.

Gautret P, Lagier, Parola JCP, Hoang VT, Meddeb L, Mailhe M, Doudier B, Courjon J, Giordanengo V, Vieira VE, Dupont HT, Honoré S, Colson P, Chabrière E et al. 2020. Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. International Journal of Antimicrobial Agents, 56 (1): 105949. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijantimicag.2020.105949.

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Batalha contra a Doença de Alzheimer: uma nova esperança na forma de coquetel de moléculas terapêuticas

A Doença de Alzheimer já foi abordada neste blog em diversas ocasiões (https://cientistasfeministas.wordpress.com/?s=alzheimer) e continua a desafiar cientistas na busca por novas opções de diagnóstico e tratamento.

Em janeiro deste ano foi publicado trabalho desenvolvido por cientistas norte americanos que utilizaram um coquetel de moléculas terapêuticas sintéticas para tratar a Doença de Alzheimer (DA), e obtiveram melhora significativa no quadro de animais de experimentação em fases iniciais da doença, com reestabelecimento de memória (https://www.cell.com/action/showPdf?pii=S2211-1247%2818%2931932-6).

A DA foi descrita pelo psiquiatra e neuroanatomista Alois Alzheimer em 1906 durante uma palestra (http://www.ghente.org/ciencia/genetica/alzheimer.htm). Os pacientes apresentam desorientação e perda de memória e de locomoção progressivos, além dos demais sintomas de demência: como estados vegetativos temporários (evoluindo para permanentes) e morte (http://portalms.saude.gov.br/saude-de-a-z/alzheimer).

Os achados principais no cérebro desses pacientes são depósitos de placas amiloides no meio extracelular e emaranhados neurofibrilares (ricos em proteína Tau fosforilada – http://ggaging.com/export-pdf/191/v6n3a07.pdf) no meio intracelular.  A associação de peptídeos beta-amiloide (Figura 1) a proteínas príon (http://www.revistaseletronicas.fmu.br/index.php/ACIS/article/download/580/702) desencadeia o acumular tóxico destas placas e induz resposta do sistema imune, que em conjunto acabam por causar a morte de neurônios e perda de comunicação entre estes na forma de sinapses (http://abraz.org.br/web/sobre-alzheimer/atualizacoes-cientificas/).

FIGURA 1

Figura 1: Peptídeo beta-amiloide (PDB 2LFM).

Após os cientistas, liderados pelo professor Stephen Strittmatter, testarem um grande número de compostos, um antigo antibiótico se mostrou promissor (leia também o texto sobre antigos fármacos para tratar novas doenças https://cientistasfeministas.wordpress.com/2019/04/03/eu-estava-aqui-o-tempo-todo-e-so-voce-nao-viu-quando-velhos-remedios-tratam-novas-doencas/) após ser decomposto para formar um polímero. Alguns outros polímeros também se mostraram capazes de passar pela barreira hemato-encefálica e exibir o efeito desejado.

Foram analisados 2560 fármacos e mais 10130 moléculas pequenas diversas e a cefalosporina Cefixime se mostrou inibitória. No entanto, no re-teste se percebeu que não era a forma natural do antibiótico que exibia a ação, e sim sua forma decomposta (obtida após incubação em DMSO a 23ºC por 6 dias). A forma degradada de Ceftazidime, outra cefalosporina, também exibiu atividade de inibir a associação de proteínas príon e peptídeos beta-amiloide.  

Os cientistas identificaram ainda polímeros de carga negativa capazes de interação específica com proteínas príon, como o polímero sintético poli [ácido 4-estireno sulfônico-ácido co-maleico] – PSCMA.

O coquetel de compostos poliméricos foi então dissolvido e ofertado a camundongos modelo para a Doença de Alzheimer, provocando reparo das sinapses e recuperação de memória.

Em um dos experimentos, os cientistas analisaram cortes de hipocampo dos animais para verificar a comunicação entre os neurônios (sinapses). A proteína SV2a é um marcador eficiente presente nos neurônios pré-sinápticos e nos animais que não sofrem de DA (WT), os níveis se mostraram antes do tratamento, maiores que o dos animais modelo de Alzheimer (TG) (Figura 2A e Figura 2C – sem polímero), devido a estes últimos sofrerem, como esperado, com perda de sinapses pela doença. No entanto, após tratamento com PSCMA por 30 dias (2 vezes ao dia), os animais modelo para a doença (TG) alcançaram o padrão de presença do marcador equivalente ao dos animais saudáveis (WT) (Figura 2B e Figura 2C – com polímero).

FIGURA 2

Figura 2: Recorte e adaptação da Figura 7 do trabalho de Strittmatter e colaboradores, 2019 (https://www.cell.com/action/showPdf?pii=S2211-1247%2818%2931932-6) evidenciando como o tratamento com PSCMA pode recuperar os níveis de SV2a em neurônios pré-sinápticos de camundongos modelo de DA.

Os resultados são animadores para o desenvolvimento de uma nova estratégia terapêutica para o Alzheimer em fases iniciais. Os pesquisadores se dedicam atualmente aos testes para verificar se a formulação não é tóxica para utilização em humanos nos ensaios clínicos.