A era da edição de genes humanos para curar doenças começou

Até a década de 1990, pessoas que sofriam de doenças genéticas não tinham expectativa real de cura. Nesta década, no entanto, cientistas começaram a desenvolver maneiras de se remover seletivamente genes de interesse do genoma de camundongos. A esperança de que no futuro a edição de genes fosse possível em seres humanos começou a ser alimentada. No século XXI, esta esperança se converteu em realidade e os responsáveis pelo desenvolvimento dos primórdios da edição de genes foram reconhecidos com o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina (https://www.jax.org/news-and-insights/jax-blog/2014/march/pros-and-cons-of-znfs-talens-and-crispr-cas). Em novembro do ano passado, vários sites noticiaram a pioneira e inovadora tentativa de edição de genes em seres humanos: Brian Madeux, de 44 anos, que sofre com a síndrome de Hunter, foi o primeiro ser humano a receber em seu organismo ferramentas de edição de genes visando sua cura (http://www.sciencemag.org/news/2017/11/human-has-been-injected-gene-editing-tools-cure-his-disabling-disease-here-s-what-you).

A síndrome de Hunter

A síndrome de Hunter é uma doença genética, o que significa que sua causa encontra-se em alterações no DNA dos pacientes. É também conhecida como mucopolissacaridose tipo II, pois a alteração no DNA prejudica a geração de proteína essencial (a iduronato-2-sulfatase) para o correto processamento de mucopolissacarídeos ou glicosaminoglicanos nas células. Estas substâncias então se acumulam nos lisossomos celulares causando comprometimentos graves ao paciente, como aumento do volume da cabeça e do abdômen, declínio de função cardíaca e atrasos no desenvolvimento. Quanto mais acúmulo de mucopolissacarídeos mal processados, mais evidentes e graves se tornam os sinais da síndrome (http://www.vidasraras.org.br/site/sindromes-raras/mucopolissacaridoses/mps-ii/367-mps-tipo-ii-o-que-e-a-sindrome-de-hunter).

No caso desta doença as alterações no DNA existem em diferentes versões e em diferentes regiões do gene da iduronato-2-sulfatase, localizado no cromossomo X (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1914889/). Alguns locais são mais comumente atingidos por estas alterações, sendo chamados de pontos quentes ou “hot spots” em inglês. O que estas alterações possuem em comum, no entanto, é impedirem a formação da versão correta desta proteína, essencial para o correto processamento dos mucopolissacarídeos e consequentemente o normal funcionamento celular.

As ferramentas mais comuns de edição de genes

As três mais famosas ferramentas que permitem a edição de genes são as nucleases dedos de zinco (ZFN), as nucleases TALE (TALEN) e o sistema CRISPR/Cas (http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0734975017300617?via%3Dihub) (Figura 1). Estas possuem a capacidade de produzir quebra nas duas fitas do DNA no local para o qual foram destinadas pelo manipulador.

TALEN e ZFN trabalham em dímeros (duas unidades idênticas) e cada unidade contém uma região da proteína nuclease capaz de fazer o corte, derivado de uma outra proteína: a enzima de restrição FokI. Cada unidade possui ainda uma outra porção que faz o reconhecimento do local do DNA no qual o corte deve ser provocado.

Nas TALEN (Figura 1), esta porção de reconhecimento foi descoberta em patógenos de plantas e consiste em repetições (10 a 30 vezes) de aproximadamente 35 aminoácidos e 2 aminoácidos conferindo especificidade ao sistema (http://science.sciencemag.org/content/333/6051/1843.long). As versões comerciais mais comuns reconhecem e se ligam a um sítio de aproximadamente 18 pares de base no DNA alvo (https://www.jci.org/articles/view/72992).

Nas ZFN (Figura 1), o reconhecimento é de cerca de 3 ou 4 trincas de bases no DNA alvo para o corte no local desejado (https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0734-9750(14)00193-1). Das três ferramentas aqui abordadas foi a primeira a ser usada pelos cientistas para edição dirigida de genes .

No sistema CRISPR/Cas (Figura 1) (inspirado em mecanismo de defesa bacteriano), Cas é a nuclease responsável pela quebra de fita dupla no DNA (https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/05/11/entenda-a-nova-arma-da-engenharia-genetica-crisprcas9-e-a-polemica-envolvida/). No entanto, neste caso faz-se necessária a utilização de uma molécula de RNA, o RNA guia (gRNA), para o correto posicionamento da proteína. O reconhecimento do DNA alvo se dá por 18 a 20 nucleotídeos (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3712628/).

Para corrigir uma região de DNA responsável por causar doenças, é possível se utilizar estas ferramentas. Basta dirigir o corte para a região com erro e fornecer, juntamente do sistema de edição sítio-dirigida de genes, o trecho de DNA com sequência correta e braços de homologia nas duas extremidades. As sequências com homologia para a região de corte orientam a inserção do trecho de DNA com gene correto no local do corte. Assim, o DNA antes com o trecho incorreto ocasionando doença, contém agora a versão correta. No caso da doença de Hunter, seria a versão correta do gene da proteína iduronato-2-sulfatase, possibilitando às células depois da terapia, realizar o processamento correto dos mucopolissacarídeos.

Imagem 1

Figura 1: Ferramentas de edição sítio-dirigida de genes. (A) ZFN (domínio FokI em rosa e domínio endonuclease –de corte- em azul). B. TALEN (domínio FokI em rosa e domínio endonuclease –de corte- em verde). (C) CRISPR/Cas (gRNA em amarelo e nucleaseCas em vermelho); modificado de https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0734975017300617?via%3Dihub.

Primeira tentativa de edição genômica em seres humanos (in vivo) (https://apnews.com/4ae98919b52e43d8a8960e0e260feb0a/AP-Exclusive:-US-scientists-try-1st-gene-editing-in-the-body)

Em Novembro de 2017, na Califórnia-Estados Unidos, o paciente Brian Madeux recebeu por via intravenosa várias cópias da versão correta do gene da iduronato-2-sulfatase e de sequência codificadora de ZNFs visando eliminar de seu DNA o fator causador da Síndrome de Hunter.

O gene e duas versões de sequência codificadora de ZFN (visando garantir o corte o mais específico possível no DNA alvo) foram entregues em veia do paciente dentro de partículas virais (veículos para condução desta informação ao interior das células do paciente).

O órgão alvo foi o fígado e, segundo os especialistas envolvidos no experimento, apenas 1% das células sendo corrigidas em seu DNA já seria suficiente para o paciente apresentar melhora do quadro.

O protocolo foi aprovado nos Estados Unidos pelo NIH (National Institutes of Health) e realizado sob supervisão do médico responsável Paul Harmatz no hospital Oakland.

Na data de realização do procedimento a equipe médica divulgou que o paciente seria novamente avaliado em fevereiro de 2018, 3 meses após o procedimento, a fim de se verificar o resultado final de sucesso ou fracasso da estratégia.

O maior risco de fracasso para a empreitada seria a inserção do gene corrigido em local não desejado, prejudicando assim a função de outros genes e podendo ocasionar outras doenças como alguns tipos de câncer.

No entanto o procedimento foi bem sucedido em seu propósito (https://nypost.com/2018/02/06/scientists-see-positive-results-from-1st-ever-gene-editing-therapy/), proporcionando revolução no campo da terapia gênica visando cura de doenças genéticas em seres humanos.

Brian Madeux sentiu fraqueza e tontura quatro dias após a terapia, mas os sintomas só persistiram por 24 horas. Seu fígado não apresentou sinais de lesão, resultado almejado pelos médicos. Até o presente momento não há indícios de que a terapia apresente riscos no que tange segurança para uso em humanos.

Um novo paciente com a mesma síndrome já foi submetido ao tratamento e a equipe médica declarou em conferência que ambos passam bem. Novos protocolos serão desenvolvidos assim como novos mecanismos para garantir a segurança da técnica. Já existe projeto, por exemplo, de teste do protocolo para outras doenças, como a hemofilia.

Assim sendo, nos encontramos oficialmente na era da edição de genes humanos para curar de doenças.

 

Um comentário sobre “A era da edição de genes humanos para curar doenças começou

  1. Pingback: CRISPR/Cas: A revolução do século está prestes a enfrentar seu maior desafio | cientistasfeministas

Deixe um comentário