Somo todos carnívoros? Ou somos todos vegetarianos?

É cada vez mais constante em nossas vida a discussão do que devemos ou não comer. Sugestões de dietas estão por todas as partes, jornal, novela, Twitter, Reddit, na roda do cafezinho do trabalho. Contudo, a motivação que nos leva a essa curiosidade é diferente para cada grupo de pessoas; pode ser a busca por um estilo de vida saudável, pode ser consciência ambiental, solidarização com os animais, guerra contra a indústria alimentícia, moda, intenção de emagrecer ou mesmo a combinação destes e outros fatores.

Uma coisa bastante comum entre os discursos sobre dieta, é afirmar que a “sua” dieta é a correta porque é aquela para qual o nosso corpo é biologicamente preparado para lidar.

Mas o nosso corpo evoluiu para comer o quê?

 

 

woman carrying basket of fruits and vegetables

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A questão pode parecer simples inicialmente. Não possuímos características anatômicas de carnívoros – nossos dentes não são ótimos para rasgar a carne como de onças, nossos intestinos são muito longos; mas também não possuímos os dentes de herbívoros ou um intestino tão longo quanto o deles. Isso parece nos dizer que somos onívoros, que significa que comemos de tudo, seja conteúdo vegetal ou animal. Contudo, muitas vezes essas relações entre anatomia e dieta não são tão claras, por exemplo o panda: ele possui caninos que poderiam te levar a concluir que é um carnívoro, mas ele come exclusivamente bambu.

 

Como anatomicamente somos parecidos com outros macacos poderíamos olhar na dieta deles para termos uma ideia do que seria nossa dieta “natural”. E assim, poderíamos concluir que comemos frutas, folhas, nozes, insetos e ocasionalmente carne. Outra forma de acessar o que evoluímos para comer, seria olhar para as dietas das populações humana que não reproduzem o sistema social das populações contemporânea-ocidentais. E verificaríamos que em sua maioria, não possui carne como base da alimentação

Então, somo predominantemente vegetarianos?

 

Também não. Um recente estudo publicado na Nature (pelos biólogos Katherine Zink e Daniel Lieberman da Universidade de Harvard), traz mais evidências à velha teoria do órgão caro; dois órgãos que são energeticamente muito custosos são o intestino e o cérebro. Herbívoros precisam de longos intestinos – onde vivem bactérias, para conseguir digerir as complexas células vegetais. Como nossos antepassados tinham uma dieta com base em alimentos de origem vegetal, precisamos de um intestino longo (lembra que mencionei que é mais longo que de um carnívoro?), mas ser capaz de acessar essa fonte extra de energia e proteína fornecida pela carne permitiu que nosso cérebro evoluísse. Ao mesmo tempo que economizamos em não ter um intestino maior ainda, também alocamos energia para o cérebro. Isso foi cerca de 2,6 milhões de anos atrás.

Mas não poderíamos apenas comer mais frutas, verduras, raízes (poxa todo mundo sabe que batata tem muita energia!)? Matematicamente falando, sim. Bastaria comer mais das fontes vegetais, contudo precisaríamos de muito tempo comendo para conseguir o necessário para liberar energia usada na evolução do nosso cérebro. Ainda mais se nossos ancestrais estivessem se alimentando de alimentos crus (o processo de cocção, não apenas ajuda na mastigação fazendo com que você consiga comer mais em menos tempo, mas também na digestão dos nutrientes, contudo, apenas dominamos esses processo 500 mil anos atrás). De acordo com Katherine e Daniel, para que nossos antepassados conseguissem energia suficiente apenas de fontes vegetais eles teriam que mastigar até 15 milhões de vezes em um ano. Isso porque no experimento conduzido por eles, foi utilizado raízes que são mais calóricas que outros alimentos vegetais. (Uma mandioca é mais calórica que um alface ou uma maçã). No experimento eles alimentaram um grupo de voluntários com raízes e outro grupo com carne, e utilizando eletrodos mediram quantas vezes cada grupo precisava mastigar e quanta energia gastavam para ingerir a mesma quantidade calórica.

agriculture cows curious pasture

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Nada disso, claro, significa que o consumo de carne aumentou tanto nos humanos contemporâneos. Clique aqui se você quiser acessar a média do consumo de carne por país. O paladar tem um papel fundamental aqui. Assim como o acesso a carne, mas isso já é assunto para uma próxima conversa.

 

Apenas gostaria de terminar dizendo, que não é porque a proteína da carne foi fundamental para a nossa evolução que nossa dieta não pode mudar. Como dito neste outro texto, não paramos de evoluir e há adaptações recentes a dietas como consumo de leite. Além disso, hoje o acesso a alimentos (infelizmente não para todos) é fácil, permitindo que você tenha acesso a outras recursos calóricos e ricos em proteína que não tenha origem animal, e claro, você também pode cozinhar.

 

Considerando nossa crise ambiental, discutir nossa dieta pensando na nossa saúde e na saúde do nosso planeta é uma questão urgente.

 

PARA LER MAIS:

 

Zink, K. D. & Lieberman, D. E. (2016). Impact of meat and lower Palaelithic food processing techniques on chewing in humans. Nature, 531, 500-503

https://www.nationalgeographic.com/foodfeatures/evolution-of-diet/

Fotos de domínio livre a serem usadas (pizabay):

 

4 comentários sobre “Somo todos carnívoros? Ou somos todos vegetarianos?

  1. Artigo bacana. Equilibrado. Meus humildes adendos: não há um só artigo na história da medicina, desde Hipócrates, cuja conclusão seja “humanos precisam de proteína animal para serem saudáveis”. Pelo contrário, há pilhas de resultados mostrando a correlação entre proteína animal e câncer, síndrome metabólica e diabetes — veganos têm menores riscos para esses quadros, como mostram vários trabalhos.
    Jainistas, na Índia, são vegetarianos há 2,5 mil anos; a Sociedade Vegetariana de Londres é de meados do século 19, e, desde então, gerações de famílias têm seguido essa dieta.
    Se aceitarmos que a proteína animal não é necessária, temos opção. Na verdade, não deveríamos consumi-la com base em apenas um critério (raro até mesmo para pessoas religiosas): COMPAIXÃO!
    Somos incoerentes. Queremos paz, justiça, o fim das guerras, harmonia entre os povos… mas, como dizia Leon Tolstói, não teremos nada disso enquanto houver abatedouros no mundo; enquanto estes existirem, haverá campos de batalha, segundo palavras desse grande autor russo.
    Deveríamos exercitar a compaixão, a paz e o não sofrimento em cada refeição. Mesmo quando tenho um dia ruim, ao me deitar, tenho, pelo menos, algo bom para pensar: a certeza de que não causei a morte de um ser senciente. Meu único arrependimento sobre ser vegano: não ter sido vegano antes — por sinal, essas são as palavras de… Mike Tyson!

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    • Olá. Primeiramente obrigada. O ponto desse artigo não é discutir o que é saudável, deixo isso para profissionais da área, mas o argumento muito utilizado (tanto por alguns que defende o consumo de carne como por alguns que defendem o vegetarinimos ou veganismo) do que é “uma dieta para qual evoluímos”. Como especialista em evolução da dieta posso dizer que há evidências científicas que apontam para que tenhamos evoluímos para onivoria, isso não é o mesmo que dizer que precisamos de proteína animal para sobreviver. Contudo, as evidências também apontam que a proteína animal foi fundamental para que nos desenvolvessemos no que somos hoje, mas isso é sobre um período evolutivo, não estamos falando de humanos modernos, mas hominídeos. Obter a quantidade energética necessária, sem fogo, sem agricultura, é diferente de alcançar essa mesma quantidade nos dias atuais. Do demais, acredito que devemos discutir nossa relação com a comida, não apenas os produtos de origem animal, mas ocom s industrializados e a nossa relação com a monocultura.

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      • Obrigado pela pronta resposta. Para enriquecer a discussão, gostaria de ressaltar algo para o qual poucos se dão conta, mas que especialistas (antropólogos, principalmente) enfatizam. Quando éramos caçadores-coletores, cerca de 90% das calorias vinham da coleta (futas, nozes, raízes etc.). A proteína animal era mínina nessa contribuição. Razões: caçar não é fácil. Por vezes, grupos de homens saíam para caçar e, dias ou semanas depois, voltavam de mãos vazias — às vezes, em menor número, pois um ou outro acabava presa.
        Conheço os trabalhos recentes — alguns de autores da UFRJ — que defendem a cocção (da carne) como causa para a, digamos, modelagem do cérebro do H. sapiens moderno.
        Mas há dois aspectos sobre o tema que sempre gosto de ressaltar:
        i) há um viès machista na valorização da carne. Esta tem a ver com a sociedade patriarcal, com a força bruta, a guerra, criação de músculos, miltarismo etc. Esse aspecto está bem esclarecido em “Gestalts of War”, de Sue Mansfield. Sobre esse tema, quase ninguém se lembra de que 90% das calorias vinham da coleta. A razão dessa desvalorização, talvez, seja o fato de que ela era praticada pelos membros ‘desvalorizados’ dos grupos: mulheres, crianças e idosos; no entanto, historicamente, a carne é que valorizada, a ponto de pessoas acharem que a alimentação do H. sapiens era totalmente cetogênica (exceção, para os povos inuítes, esquimós) — daí, o fundamentalismo da dita ‘paleodieta’, sem base cientíica alguma, baseada numa distorção história;

        ii) um segundo ponto — e aqui falo apenas como curioso, pois minha área é história da física — é o fato de vários vegetais (espinafre, 49%; couve, 45%; brócolis, 45%; etc.) terem mais proteína que as carnes vermelhas (26%) e os ovos (12%); no entanto, sempre se enfatiza que as proteínas ‘animais’, somadas à cocção, foram as responsáveis por moldar o cérebro humano. Nesse sentido, é curioso apontar para algo com que me defronto comumente: muitos acham que a mesma molécula de proteína tem diferença caso venha da carne ou das plantas. Qualquer um que conhece física ou química minimamente, sabe que uma molécula é uma molécula, assim como um átomo de hidrogênio do Sól é exatamente igual ao um que esteja na Terra ou nos confins do cosmo, ou seja, um próton rodeado por um elétron.

        Em resumo, agradeço sua gentileza em dar atenção ao meus comentários.

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    • Sim, são boas colocações. Descorro um pouco sobre as sociedades coletora-caçadoras modernas como projeção para os hábitos dos hominídeos aqui https://cientistasfeministas.wordpress.com/2018/03/14/eu-tu-e-os-neandertais/

      Acredito que um ponto muito importante ase considerar é que não é possível que todos os hominídeos tivesse a mesma alimentação. Uma das grandes vantagens em ser onívoro é poder lidar com a variação ambiental e comer conforme a disponibilidade dos alimentos. Eu particularmente acredito que havia sociedades mais carnívoras e outras menos, a depender do ambiente e do ano!

      Também falo um pouco sobre a influência do sexismo nas interprestações científicas (e até mesmo nas questões levantadas pelos cientistas) aqui: https://cientistasfeministas.wordpress.com/2017/10/09/as-re-descobertas-da-ciencia/

      (Aproveitando pra divulgar um poucos meus textos).

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