Cura para o câncer: não foi dessa vez.

Quem acompanha, mesmo que esporadicamente, os noticiários, desde o ano passado ouve falar em fosfoetanolamina. O foco principal tem sido sobre a liberação de seu uso como medicamento para “curar o câncer”. As coberturas são bem polêmicas e muitas vezes são permeadas por sensacionalismos e relatos desesperados, deixando de lado a ciência que existe por trás da descoberta de novas substâncias de potencial medicamentoso. E é sobre essa ciência que vou falar hoje. Mas antes, segue um breve relato sobre a história da fosfoetanolamina.

A fosfetanolamina é uma amina primária encontrada naturalmente em tecidos animais e foi descoberta em 1936 por Edgar Laurence Outhouse, do Departamento de Pesquisas Médicas do Instituto Banting da Universidade de Toronto, Canadá. No Brasil, foi estudada a partir dos anos 90 pelo Dr. Gilberto Orivaldo Chierice, químico do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo. O resultado de um de seus estudos foi publicado em 2012 na “Anticancer Research” e é intitulado “Anticancer effects of synthetic phosphoethanolamine on Ehrlich ascites tumor: An experimental study” (Efeitos anticancerígenos da fosfoetanolamina sintética no tumor ascético de Ehrlich: um estudo experimental). Nesse trabalho, a conclusão foi a de que a fosfoetanolamina sintética, que vamos chamar apenas de FOS, apresenta potencial como candidato a droga anticâncer. Se existe potencial, então uma série de estudos adicionais deve ser realizada, a fim de obter informações que ajudem a confirmar esse potencial.

mecanismo fosfo

Mecanismo de ação da FOS sugerido pelos pesquisadores do Instituto de Química de São Carlos (USP). O modelo ainda precisa ser confirmado em testes.

Para que uma substância chegue à confirmação de seu status como droga anticâncer, uma série de testes precisa ser feita e cada etapa é eliminatória, ou seja, com resultados negativos ou não satisfatórios os testes são encerrados. Esses testes visam garantir não apenas a eficiência e eficácia da droga contra a doença-alvo, mas também garantir sua segurança para uso humano. Os primeiros testes a serem realizados são chamados de pré-clínicos, ou seja, são testes realizados em laboratório. A substância é testada primeiramente em culturas de células (testes in vitro), onde são avaliados parâmetros como eficácia, toxicidade e porcentagem de morte celular, além de mecanismos de ação. Com resultados positivos, os testes passam a ser realizados em animais (testes in vivo) avaliando doses, ocorrência de efeitos colaterais, redução do tumor e taxa de sobrevivência dos animais. Apenas após essa série de testes é que a substância, caso tenha sua segurança e eficácia comprovadas, segue para a fase de testes clínicos, onde pacientes com câncer são selecionados para fazer parte dos estudos.

A etapa clínica de testes é crucial para a segurança das pessoas que, no futuro, podem vir a usar o medicamento com a substância estudada. Ela dura muitos anos e passa por quatro fases distintas. A fase 1 tem o objetivo de avaliar a segurança da substância em um pequeno grupo de pacientes (10 a 30). A fase 2 usa um grupo um pouco maior de pacientes, de 70 a 100, e verifica a eficácia e aprofunda o conhecimento sobre a segurança da substância. Na fase 3 é feita a comparação entre a nova substância e o tratamento padrão em um número maior de pacientes (100 a 1000). Chegando até essa fase e sendo comprovada a eficácia e segurança da substância, os resultados são enviados à ANVISA, para regulamentação e aprovação de comercialização. Tem então início a fase 4, na qual ocorre a chamada vigilância pós-comercialização, ou seja, o acompanhamento a longo prazo dos efeitos da medicação nos pacientes. Dados como efeitos colaterais, interações medicamentosas e estratégias de tratamento são coletados e analisados.

Entretanto, para a FOS sintética, esses dados são inexistentes, ou seja, a substância nunca passou pela fase de testes em humanos para que sua eficácia e segurança fossem comprovadas. Além disso, a fase pré-clínica de estudos é bastante incompleta, pois ainda há muito a ser descoberto sobre a FOS, como os mecanismos de ação, sua metabolização e excreção e interações medicamentosas.

A boa notícia é que para esclarecer de uma vez por todas as dúvidas pairando sobre essa substância, uma série de estudos foi encomendada em uma parceria do Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) e o Ministério da Saúde. Esses estudos estão sendo realizados por instituições nacionais de reconhecida excelência em pesquisa. Semana passada, foram divulgados três relatórios com resultados de estudos in vivo sobre os efeitos da FOS. A má notícia é que mais uma vez os resultados não são animadores.

Os estudos tiveram como objetivo avaliar o efeito da FOS sobre diferentes tipos de tumores in vivo, a saber: sarcoma 180 em camundongos Swiss, carcinossarcoma 256 de Walker em ratos Winstar e tumor xenográfico subcutâneo em camundongos nude. Os dois primeiros estudos foram realizados pela equipe de Odorico Moraes, do Laboratório de Oncologia Experimental do NPDM da Universidade Federal do Ceará e o terceiro foi realizado no CIEnP pelo grupo de Rodrigo Marcon.

Tanto para o sarcoma 180 quanto para o carcinossarcoma 256, após 10 dias consecutivos de tratamento, não foi observado efeito de inibição nos tumores dos animais tratados com FOS (dose de 1g/kg de peso corporal). Resultados semelhantes foram observados nos animais usados como controle negativo, que receberam apenas soro fisiológico durante o tratamento. Já nos animais que receberam ciclofosfamida, droga utilizada para tratamento de alguns tipos de câncer, não foi observado crescimento tumoral. Outro ponto importante a ser levado em consideração, é a dosagem utilizada. A ciclofosfamida foi usada na dose de 25mg/kg de peso corporal, dose 40 vezes menor do que a de FOS. Além de não haver redução do carcinossarcoma 256, em 7 dos 15 animais tratados com FOS, também foi observada a ocorrência de metástases pulmonares.

Já para o tumor xenográfico subcutâneo, as doses de FOS avaliadas foram de 200 e 500 mg/kg de peso corporal e o controle positivo foi feito com cisplatina na dose de 2mg/kg de peso corporal. Aqui também podemos observar que as doses de FOS utilizadas são muito maiores do que a dose do controle positivo. Durante o período de tratamento, apenas a FOS na dose de 500mg/kg foi capaz de reduzir em 34% o volume tumoral quando comparado ao controle negativo (que recebeu apenas solução de cloreto de sódio). Essa redução foi significativa, mas menor do que aquela obtida no tratamento com a cisplatina.

Os resultados dos testes anteriores também são negativos, e aqui segue um resumo do que foi apresentado:

– As cápsulas de FOS fornecidas pelo Instituto de Química de São Carlos foram testadas e não possuem a pureza alegada, de 95%, sendo na verdade uma mistura de compostos (fosfoetanolamina, fosfobisetanolamina e monoetanolamina);

– O processo descrito na patente não é capaz de obter os altos rendimentos de FOS pura descritos pelo grupo;

– A fosfoetanolamina e a fosfobisetanolamina não apresentaram atividade citotóxica ou antiproliferativa;

– O efeito citotóxico e a inibição de crescimento tumoral da substância monoetanolamina são 3000 vezes menos potentes do que os antitumorais cisplatina e gencitabina.

Esses resultados já seriam suficientes para interromper os testes com a FOS, porém o grupo de trabalho decidiu por prosseguir com mais alguns testes, utilizando outros tipos de células tumorais in vitro e tumores in vivo para avaliar de maneira mais detalhada a existência de atividade citotóxica e antiproliferativa da substância.

Um resumo sobre todos os resultados obtidos nas pesquisas até o momento pode ser encontrado no link abaixo:

http://www.mcti.gov.br/documents/10179/1274125/Relat%C3%B3rio+do+Semin%C3%A1rio+sobre+estudos+preliminares+da+Fosfoetanolamina+Sint%C3%A9tica+%28FOS%29/2ca3e868-e3be-491f-9301-ff7bb3ccb99d

Para mais detalhes sobre as pesquisas e últimas notícias sobre a FOS, acompanhe:

http://www.mcti.gov.br/relatorios-fosfoetanolamina

http://www.mcti.gov.br/fosfoetanolamina

http://www5.usp.br/tag/fosfoetanolamina/

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