Quem chegou primeiro, o piolho ou o homem?

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Fig 1:Pediculus humanus. Fonte: Science

É só começar a falar na palavra piolho que as pessoas começam a se coçar. Pudera, esse inseto tão pequenino quando infesta alguém causa muito desconforto e chateação.  Mas o que as pessoas sabem sobre esses parasitos? De fato, quando pensamos em piolhos sempre vêm algumas perguntas à cabeça: como se pega? Será que voa ou pula?

Essas e algumas outras perguntas já foram desvendadas por pesquisadores, mas existem outras que ainda estão sendo estudadas, tais como: De onde surgiram estes ectoparasitos1? Será que os macacos passaram os piolhos para nós, ou fomos nós que passamos para os macacos? Essas questões e talvez  o famigerado piolho… sempre estiveram presentes na cabeça dos pesquisadores que trabalham com estes insetos, que têm características relevantes, dentre elas:

  1. Quase não sair do corpo do hospedeiro, onde se reproduzem e se alimentam;
  2. A transmissão ocorre pelo contato, pois não conseguem sobreviver muito tempo fora do hospedeiro. E ao contrário do que as pessoas pensam, piolhos não pulam ou  voam; eles saem andando do corpo, a fim de parasitar outro possível hospedeiro;
  3. São espécie-específicos. Só existem duas espécies de piolhos que parasitam o homem: Pediculus humanus e Phthirus pubis. Pediculus humanus é dividido em duas subespécies: Pediculus humanus capitis, que só ocorre na cabeça, vulgo “piolho de cabeça”; e Pediculus humanus humanus, que ocorre no corpo do indivíduo, vulgo “piolho de corpo”. Phthirus pubis ocorre na região genital e é vulgarmente chamado de “chato”.

A relação entre piolhos e seus hospedeiros vem de muitos anos: aves e mamíferos são parasitados por eles há mais de 65 milhões de anos. A grande maioria dos piolhos que parasitam mamíferos apresentam as características citadas acima. Essas características são interessantes e importantes de se considerar ao se pensar em modelos de co-evolução, ou seja, um modelo para se entender sobre a evolução da relação  dos piolhos com seus hospedeiros.

Em 2016, um estudo realizado por Rezak Drali, em parceria com grupos da França e Austrália, abordou os aspectos evolutivos entre este parasito, o homem e os macacos. O resultado deste estudo foi publicado na revista Infection, Genetics and Evolution sob o título “A mudança de hospedeiros de piolhos humanos para macacos do Novo Mundo na América do Sul”. Desde sua primeira classificação, por Ferris em 1916, os piolhos de macacos do Novo Mundo são considerados espécies muito parecidas com os piolhos de humanos, possibilitando a classificação no mesmo gênero: Pediculus. Rezak Drali e seus colaboradores, intrigados por esta grande semelhança morfológica, decidiram comparar em uma análise evolutiva as espécies destes parasitos dos homens e dos macacos da América do Sul.

Os humanos saíram da África há mais de 100.000 anos carregando seus parasitos, e dentre eles, o piolho. O “piolho de corpo” habita as vestes do hospedeiro, e para se alimentar sai das roupas para a pele. As fêmeas, ao se reproduzirem, fixam as lêndeas nas roupas.  Estudos anteriores mostraram que quando os homens começaram a usar roupas, os piolhos que habitavam a cabeça começaram a migrar para este outro “habitat”. Assim é possível que o “piolho de corpo” tenha surgido a partir do “piolho da cabeça”.

É comum que mudanças de habitat e migrações favoreçam mudanças genéticas nos indivíduos. Por exemplo, pessoas que moram na Ásia têm características morfológicas e genéticas distintas de nós que moramos na América do Sul. Estas características também acontecem nos piolhos. As suas diferenças genéticas vão de encontro com a sua distribuição ao redor do mundo. Por isso,  pesquisadores decidiram distribuí-los em haplogrupos A, B e C. O haplogrupo A ocorre no mundo todo e é formado por piolhos de cabeça e de corpo; haplogrupo B ocorre nas Américas, Leste Europeu, Austrália e Norte da África e é formado por piolhos de cabeça; o haplogrupo C ocorre no Nepal, Tailândia, Etiópia e Senegal, sendo formado por piolhos de cabeça.

Nas Américas, espécies como macacos prego e bugio têm piolhos muito parecidos com o dos humanos. Para se tentar entender um pouco sobre a relação entre Pediculus humanus e Pediculus mjobergi (piolho dos macacos), estes pesquisadores realizaram um extenso estudo com piolhos dos macacos provenientes da Guiana Francesa e da Argentina. A análise dos parasitos em humanos foi realizada com “piolhos de cabeça” coletados na Amazônia; além de “piolhos de cabeça” e “piolhos de corpo” coletados na França fornecendo dados do haplogrupo A, que ocorre no mundo inteiro. Destacamos também que as amostras dos “piolhos de cabeça” provenientes da Amazônia, vieram de local isolado e remoto, fora da zona de turismo, na comunidade de Wayapi de fronteira entre Guiana Francesa e Brasil. Este dado é importante para o estudo pois o isolamento geográfico diminui a probabilidade de piolhos de outros haplogrupos vindo de outras regiões se misturarem com os piolhos desta comunidade, interferindo nos resultados da pesquisa.

O que os pesquisadores viram em seu estudo? A morfologia entre ambas espécies é de fato muito parecida. Além disso, ao fazer análises comparativas do DNA, todas as avaliações indicaram alta similaridade entre as sequências dos piolhos de macaco com os piolhos de cabeça do grupo da Amazônia. Este resultado indica que há uma relação muito próxima entre estas espécies, com trocas genéticas entre elas.

Possivelmente a origem destes piolhos em macacos veio dos humanos, já que além da grande similaridade genética e morfológica foi observada a presença de duas linhagens (A e B) de piolho de humanos em um só macaco. Este fato pode ser explicado pela relação de proximidade de humanos com macacos naquela região (Fig.2). Além disso, é provável que por causa dessa proximidade os piolhos trocaram os seus hospedeiros originais, o que acabou gerando mudanças evolutivas. Essas mudanças, nos estudos evolutivos parasitológicos, são denominadas “host switching”.

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Fig.2. Criança indígena com macaco de estimação.Fonte: Greenpeace

Para finalizar, destaca-se que o artigo de Rezak Drali e colaboradores mostra a relação e o impacto do contato entre humanos e animais. A transmissão de um parasito para outro hospedeiro não ocorre só de animais para humanos, mas também de forma inversa. Apesar de parecer inofensivo, até então o “piolho de corpo” é a única espécie de piolho que é capaz de transmitir doenças para os seres humanos: tifo epidêmico, febre das trincheiras e febre recorrente. A ocorrência destes patógenos em Pediculus mjorbergi ainda é desconhecida, necessitando-se mais estudos.

Vai um piolhinho aí?

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Fig. 3: Crianças indígenas catando piolhos. Fonte: Blog impressões amazônicas.

 

1- Parasitos que ficam no exterior do corpo, ex: carrapatos, pulgas e piolhos.

Referências:

1- Kittler, Ralf, Manfred Kayser, and Mark Stoneking. “Molecular evolution of Pediculus humanus and the origin of clothing.” Current Biology 13.16 (2003): 1414-1417.

2- Drali, Rezak, et al. “Host switching of human lice to new world monkeys in South America.” Infection, Genetics and Evolution 39 (2016): 225-231.

3- http://phthiraptera.info

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