Joana D’Arc visita o Brasil. Ou pelo menos podemos imaginar como seria

Desde 2 de julho até 25 de agosto está aberta a exposição Chica da Silva recebe Joana d’Arc na cidade de Serro-MG, depois de um mês em Diamantina-MG. Infelizmente não se trata de uma visita oficial da heroína francesa a uma das mais célebres mulheres brasileiras do século XVIII, mas de uma igualmente interessante proposta de comparar a trajetória dessas duas personagens instigantes. O Cientistas Feministas conversou com a pesquisadora responsável por essa exposição, a historiadora Flávia Aparecida Amaral, professora da UFVJM, sobre a proposta dessa exposição, como Chica da Silva e Joana D’Arc podem ser comparadas, como esse tipo de abordagem auxilia a pesquisa no Brasil, especialmente na área de Estudos Medievais, e também sobre a sua pesquisa sobre a construção da imagem heroica de Joana D’Arc.

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Você poderia explicar como surgiu a ideia de estabelecer um diálogo entre Chica da Silva e Joana D’Arc?

F.A: A exposição Chica da Silva recebe Joana d’Arc é parte das ações planejadas dentro do projeto Caminho Saint Hilaire, da prefeitura de Diamantina, cujo objetivo é desenvolver um corredor cultural, histórico, gastronômico, ambiental e medicinal, na região que liga três cidades: Conceição do Mato Dentro, Serro e Diamantina. O naturalista francês Auguste Saint-Hilaire percorreu essa região, descrevendo sua flora, relevo e cultura no início do século XIX. O objetivo da exposição foi homenagear a cidade francesa de Orléans, onde nasceu Saint-Hilaire, no mês de comemoração dos 590 anos da libertação dessa cidade por Joana d’Arc. A irmanação das cidades do Serro, Diamantina, Conceição do Mato Dentro e Orléans, proposta pelo projeto Caminho Saint-Hilaire, nos deu a oportunidade de vislumbrar aspectos que aproximam esses municípios de grande importância histórica para seus países. Um dos pontos mais interessantes é o fato dessas cidades contarem com duas personagens femininas que protagonizam a construção da memória local nessas regiões. Mulheres com percursos improváveis, que ocuparam espaços não destinados a elas e que até hoje provocam reflexões e polêmicas na interpretação das suas trajetórias de vida.

De que forma vocês traçaram esses diálogos em termos de temas e objetos selecionados para a exposição?

F.A: A exposição foi pensada em torno de uma ideia central: Chica da Silva recebendo Joana d’Arc para uma visita, visto que o evento, em Diamantina, ocorreu na Casa da Chica onde, atualmente, funciona o Escritório Técnico do Iphan na cidade. Dessa forma, em um primeiro momento, o objetivo era apresentar a Donzela de Orléans à dona daquela casa e aos moradores da cidade a partir de alguns documentos históricos. No primeiro ambiente da exposição, trouxemos testemunhos documentais do século XV cujo objetivo principal é desvendar a verdadeira personalidade de Joana d’Arc. Em De quadam puella, texto anterior à vitória em Orléans, a pergunta essencial é “Quem é essa jovem”? Já na obra Sibilla Francica – “Sibila Francesa” – o autor proclama Joana como uma profetisa pertencente a um grupo reconhecido pelo cristianismo como as mulheres que profetizaram, além dos destinos de gregos e romanos, a Encarnação de Jesus – as Sibilas.

A partir do reconhecimento de Joana d’Arc como uma sibila, tem início a conexão entre a heroína francesa e a história do Tijuco (antigo nome de Diamantina). Diamantina é o único local de colonização portuguesa na América a contar com representações das sibilas em véus quaresmais e na abóbada de uma de suas Igrejas, a de Nosso Senhor do Bonfim. Na mostra expusemos a representação de um desses belos véus quaresmais como forma de aproximar Joana d’Arc da história do Tijuco.

Dentro do contexto da exposição, a apresentação de Joana d’Arc a seus anfitriões – Chica da Silva e o povo de Diamantina – teria o seguinte percurso.

  • Uma pergunta inicial “Quem é essa Donzela, quem é Joana d’Arc?” A partir dos documentos apresentados o público poderia construir sua resposta. Além dos trechos dos dois documentos já apresentados DE QUADAM PUELLA e SIBILA FRANCICA, foi colocado à disposição do público um livreto com trechos do processo que condenou Joana d’Arc à morte, na fogueira, em 1431, do processo que anulou a condenação, em 1456, e do processo que a beatificou, tornando-a santa em 1920.
  • A apresentação de Joana d’Arc como uma sibila pela obra SIBILA FRANCICA aproxima essa personagem histórica dos anfitriões. Familiarizados com suas sibilas, Chica da Silva e os diamantinenses passam a ter condições de decifrar a personalidade da visitante.

E de que forma essa comparação pode auxiliar os estudos e as interpretações sobre essas duas mulheres aqui no Brasil?

F.A: O ponto chave da exposição foi trabalhar a questão da construção e dos usos da memória e a importância desse debate na formação das identidades. Quem foi Chica da Silva, quem foi Joana d’Arc? Poucos se atrevem a dar uma resposta definitiva, mas todos temos que concordar que as memórias construídas em torno dessas duas figuras femininas moldaram e continuam moldando o imaginário de seus países de origem. Brasil e França lançam sobre essas personagens históricas luzes e sombras na interpretação de seu próprio passado buscando nessas mulheres algo que possa conduzir esses países na encruzilhada de seus desafios ao longo do tempo.

Em termos mais gerais sobre a área de História Medieval, você poderia falar um pouco sobre a presença dos Estudos de Gênero nessa área?

F.A: Especialmente na década de 1990 o recorte dos estudos de gênero fez sucesso entre os medievalistas, sobretudo na historiografia norte-americana. Há um livro que se tornou referência para o assunto, escrito pelo professor R. Howard Bloch, da Universidade de Yale: Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental, de 1991. Na obra o autor traça um panorama da aversão à figura feminina construída pelos textos cristãos do início da Idade Média, discutindo a importância desse modelo que influenciou a literatura medieval e a construção da ideia de amor romântico no Ocidente. A partir de então houve uma proliferação desses estudos que conheceu seu auge naquele período.

Finalmente, pode nos explicar um pouco do seu trabalho a respeito das imagens construídas de Joana D’Arc?

F.A: No meu doutorado investiguei as condições historiográficas e intelectuais que permitiram a construção de Joana d’Arc como uma heroína laica e republicana no século XIX francês. Esse processo esteve associado à construção do discurso nacionalista e ao nascimento da História enquanto uma disciplina científica. Agora, no pós-doutorado, estou trabalhando com textos do período em que Joana d’Arc surge no cenário político francês, em 1429. Naquele momento houve muita dúvida em relação à verdadeira natureza de suas inspirações, se elas teriam uma origem divina ou diabólica. Tenho estudado alguns desses textos com o objetivo de discutir a partir de Joana d’Arc as visões sobre o profetismo feminino no final da Idade Média.

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Após o período em Serro, a exposição Chica da Silva recebe Joana D’Arc seguirá para Conceição do Mato Dentro-MG. Não deixem de conferir!

 

Referências:

BLOCH, Howard Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental São Paulo: Editora 34, 2000.

AMARAL, Flávia A. História e ressignificação: Joana d’Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX São Paulo. Universidade de São Paulo. Tese de Doutorado. 2012.

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