E aí, e as girafas?

Lembra do colegial? Te ensinaram a definição clássica de espécie biológica: membros da mesma espécie são capazes de cruzar e gerar um indivíduo fértil. Em outras palavras: 1) se não conseguem se reproduzir: são de espécies diferentes ou, 2) se reproduzem, mas o indivíduo (híbrido) nasce estéril (não é capaz de se reproduzir): são de espécies diferentes, agora 3) se reproduzem e o descendente é capaz de procriar: são da mesma espécie. Simples, não?

Só que a natureza é mais complicado do que gostamos de assumir para os alunos. Isso porque a problematização não é vista como um bom método didático na leitura tradicional da educação, essa que a maioria das escolas brasileiras seguem.

Mas eu vou levantar a bola aqui: a definição clássica de espécie biológica encontra alguns empecilhos na natureza. Uma variável bem simples não contemplada por essa definição é a existência de populações isoladas. Como saber se são capazes de se reproduzir se encontram-se isoladas naturalmente, seja por um rio, seja por uma montanha e hoje em dia ainda pode ser isolada por uma cidade ou açude? O que quero dizer é: se existem duas populações de muriqui, cada uma em um fragmento diferente que não se conectam e eles possuem cores diferentes como saber se são ou não da mesma espécie?

Já os primeiros naturalistas encontraram problemas para reconhecer espécies na natureza. Claro que não há dúvidas em diferenciar uma anta de um macaco, mas essa diferenciação fica mais complicada quando se tenta diferenciar as espécies de macacos; mais difícil ainda entre populações de um mesmo “tipo” de macaco, como o caso do muriqui explicitado acima.

Esses primeiros naturalistas utilizavam uma análise cuidadosa, mas não muito sistemática: diferenças visuais de morfologia: como diferenças na coloração de pelagem. Contudo, sabendo que existe plasticidade de características, como definir até que ponto uma variação na coloração de pele seria suficientemente grande para caracterizar uma outra espécie? Pasme que, mesmo com as análises mais sistemáticas da morfologia atual, essa linha continua não apenas tênue, mas turbulenta e perigosamente subjetiva. Veja bem, são trabalhos seríssimos, mas que se apoiam numa falta de consenso de termos.

Um novo braço da ciência apareceu com ares de quem ia resolver esta questão: a genética. Mas na ciência não há respostas simples e/ou diretas, e as análises moleculares também estão sucetíveis à interpretações quase que subjetivas, afinal para consideramos que são espécies diferentes de quanto deve ser a diferença genética? Ou: há quanto tempo deve ter ocorrido essa separação filogenética?

Enquanto isso, uma nova pesquisa está “bombando” nos blogs científicos como BBCSCIENTIFIC AMERICAN, NATURE: a girafa não é mais uma espécie, mas quatro!

Isso devido a um estudo molecular que mostrou que na realidade as 4 populações existentes de girafas possuem diferenças moleculares  suficientes para serem consideradas espécies diferentes e que estas diferenças ocorreram entre 1 a 2 milhões de anos.

Mas não só de girafas os cientistas moleculares especulam. Como não voltar a atenção para a terra onde “ afinal as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”? Assim, nossas espécies sul-americanas também tem passado por re-estruturação. Como exemplo eu não poderia de deixar de falar dos meu queridinho: os macacos-prego. Análises filogenéticas de macacos-prego o separam em dois gêneros: Cebus com 4 espécies e Sapajus com 8 espécies. O estudo mostra que as diferenças filogenéticas mas recentes que separam duas espécies de Sapajus foi de  apenas 400 mil anos. Em poucas palavras, a genética tem aumentado o número de espécies ao reclassificar o que era considerado uma espécie em múltiplas espécies diferentes.

Em aspecto de conservação essa super separação me parece lógica. Todas as populações selvagens desses animais são de extrema importância. Se separamos, fica mais fácil pedir verba e criar ações de preservação; por uma questão simples de matemática: se eu tenho duas populações de macacos-prego da mesma espécies, 1) uma com 50 indivíduos e 2) a outra com 5000 indivíduos, tenho na realidade 5050 indivíduos dessa espécie de macaco-prego. Agora, se nessa situação tenho duas espécies: espécie A com 50 indivíduos e espécie B com 5000, fica mais evidente que a espécie A precisa de ações imediatas de conservação.

O desafio está em decidir em que ponto as diferenças são suficientes para classificar como espécies diferentes ou são variabilidade populacional, ou seja, diferenças entre indivíduos e entre população. Afinal, se qualquer cor, qualquer variação morfológica e qualquer variação filogenética consideramos como suficiente para constituir uma nova espécie, além de não conseguirmos mais falar de evolução estaremos insinuando que nós, humanos somo de espécies diferentes. E a historia mostra como não somos bons em lidar com essas diferenças.

Seria as variações da nossa espécie a usada como limite para determinar variação populacional? Afinal, tenho certeza que todos temos calafrio só em pensar nas problemáticas que enfrentaríamos em querer afirmar que há mais de uma espécie humana. Já bastam as atrocidades que ainda se cometem quando falamos de diferença de gênero, identificação sexual, cultura e até roupa! Imagine se falarmos de espécies? Me fez re-lembrar quando alguns tinham alma enquanto outros não!

Contudo, esta e outras questões envolvendo definições biológicas, que não são tão simples e certeiras assim, precisam ser discutidas a sério pela sociedade. Afinal, mesmo que não se perceba de imediato a relação, a sociedade toma decisões baseadas nessas definições. Como exemplo: o que é vida? E, portanto, quando podemos desligar a respiração artificial? Ou quando começa a vida e, portanto, quando um aborto começaria a ser considerado assassinato? Ou o que é espécie e os cuidados que devemos tomar com a má interpretação da ciência?

Ignorar a problemática é deixar que alguém decida por você. Já não estamos cansados de decisões que refletem uma minoria e não a real compreensão e desejo da sociedade? Por medo de não se discutir, deixaremos que os mal intencionados decidam pela maioria.

É hora de falar de ciência.

Referências:

Rosenberg NA, et al. 2002 Genetic Structure of Human Populations. Science.

Lynch-Alfaro JW, Boubli JP, Olson LE, et al. 2011. Explosive Pleistocene range expansion leads to widespread Amazonian sympatry between robust and gracile capuchin monkeys. Journal of Biogeography 39:272-288.

Lynch Alfaro JW, Silva JD Jr, Rylands A. 2012. How different are robust and gracile capuchin monkeys? An argument for the use of Sapajus and Cebus. American Journal of Primatology 0:1-14..

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